De Little Richard à Miles Davis e de Chuck Berry à George Clinton a presença negra no rock vai muito além dos incendiários solos de Jimi Hendrix. Desde os riffs swingados do Rhythm & Blues de Sister Rosetta Tharpe e culto obscuro a persona de Robert Johnson o rock n’ roll – e suas inúmeras variações –, vem lutando para não deixar esquecer que ele também é feito por pessoas negras.
Muito se discute sobre o pioneirismo negro no rock, fato que é inegável, apesar de todas as tentativas, algumas com muito sucesso, de embranquecimento do gênero e seus sub-gêneros. Nesse texto não tenho a intenção de discutir a maternidade e paternidade negra do rock, nem as formas como a branquitude se apropriou da criatividade negra, assunto que foi com certeza destrinchado com maestria por inúmeros outros textos. Quero aqui compartilhar algumas de minhas paixões e descobertas recentes que me fizeram não esquecer que o rock é som de preto desde sua concepção e ainda continua sendo. Por isso digo antes de tudo: os critérios que usei são altamente pessoais e arbitrários. A intenção foi fazer uma lista leve e descontraída que instigue outras pessoas a pesquisar e a se deliciar com músicas não tão conhecidas pelo público em geral.
Tento mostrar aqui um pouco da inventividade negra presente nestes cinco discos que selecionei que abrangem gêneros como o punk, o hardcore, hip hop, funk, ska e o metal. O importante aqui não é a representatividade, mas sim mostrar bandas com todos integrantes negros que mantém a tradição negra de inventar novas formas de se tocar rock a partir da mescla de diferentes influências musicais. Bora lá:
Death – …For the Whole World to See (1975/2009)
Em Detroit os irmãos Hackney – David, Bobby and Dannis – inspirados pelo fervor musical dos anos 1960 decidiram criar a própria banda de garagem na casa de seus pais. Originalmente os irmãos formaram uma banda de funk, até que tiveram contato com shows do The Who e do Alice Cooper e decidiram enfim explorar um som mais pesado. Com a morte do pai num acidente a banda decide se renomear como Death, como homenagem e numa proposta de ressignificar a concepção de morte. Em 1975 a banda conseguiu os primeiros contatos com uma grande gravadora, a Columbia, para gravar seu primeiro disco, mas por desentendimentos com o empresário, que queria mudar o nome da banda pra algo mais comercial, o grupo abandona o contrato.
Depois de anos o grupo consegue lançar o single “Politicians in My Eyes” b/w “Keep on Knocking,” com quinhentas cópias por outra gravadora. A agressividade e o tom de protesto do grupo precediam o punk do final da década de 1970, fazendo o grupo se tornar um dos pioneiros do gênero. O single se tornou um item de colecionador desde então, até que nos anos 2000 ele é descoberto pela Drag City Records que decide lançar os originais da Columbia em 2009 no álbum …For the Whole World to See. O som da banda é uma espécie de proto-punk, bem na linha de outras bandas pioneiras do gênero como The Stooges e MC5, mas mantendo algumas de suas antigas influências do funk como vemos no pontual baixo que marca a maioria das composições. Em “Politicians in My Eyes” temos algumas referências líricas do porque a banda ser associada a gestação do punk com críticas ácidas aos políticos.
Bad Brains – Bad Brains (1982)
Bad Brains é uma das bandas mais icônicas do punk hardcore. O som aceleradíssimo, complexo e pesado da banda constratando com suas incursões no reggae tornam o seu som altamente característico e original. A destreza técnica do grupo vem de seu passado como uma banda de jazz fusion, o que evidencia também algumas referências futuras que eles iriam adotar como o funk e o soul, os tornando assim pioneiros também no metal alternativo dos anos 1990. Em sua formação clássica todos os membros do grupo eram adeptos do movimento rastafari, o que refletia em várias de suas abordagens críticas e não comerciais em suas músicas.
Após de serem banidos da maioria dos clubes de Washington D.C. o grupo parte para Nova Iorque e grava em k7 o seu álbum de estreia. O disco autointitulado se tornou um clássico atemporal logo em seu lançamento, revolucionando as barreiras do hardcore punk. A banda praticamente reproduz as suas performances caóticas dos palcos em quase vinte curtas e cruas faixas. Intercalando a explosão do hardcore com o sublime do reggae, sem perder a postura profética e crítica a sociedade em geral. O disco é uma referência até hoje e abriu o caminho para a banda seguir uma considerável carreira comercial.
ESG – Come Away With ESG (1983)
Não necessariamente uma banda de rock no sentido estrito da palavra as ESG são as representantes femininas dessa lista. A banda foi formada pelas irmãs Scroggins – Renee, Valerie, Deborah e Marie – depois de serem descobertas em um show de talentos por um empresário. Criadas ouvindo James Brown e outros artistas do cenário funk e soul da década anterior as irmãs Scroggins, começaram a se dedicar a música incentivadas pela família com medo da violência das ruas do Bronx. A mãe das meninas comprou instrumentos percussivos, os mais baratos para a família, o que criou uma das características do som da banda. O rock do grupo não está no peso de suas composições, mas sim no balanço hipnotizante que o grupo faz no grave e no groove de suas músicas. Assim, apesar do pesado nome – Esmerald, Sapphire e Gold – o som das meninas é marcado por uma pegada minimalista que pode embalar qualquer festa.
Em seu disco de estreia Come Away With ESG a banda criou um som particular que se tornou referência não só pra cena punk, mas também pro dance eletrônico e principalmente pro hip hop, onde muitos artistas mineram até hoje samples pra suas próprias composições. O ritmo embalante, as pegajosas linhas de baixo e os vocais apaixonados das meninas do ESG criaram um som que cativam aqueles que procuram o balanço do rock de uma forma nunca antes vista.
Living Colour – Time’s Up (1990)
Living Colour provavelmente é a banda desse texto que melhor conseguiu alcançar o sucesso comercial. Parte desse sucesso se deu pelo lançamento de seu debut Vivid e principalmente pelo hino Cult of Personality. Liderados pelo guitarrista inglês Vernon Reid a banda novaiorquina experimentou outros gêneros musicais negros como o funk, jazz, hip hop e punk sem perder o apelo comercial e nem o peso do hard rock e do heavy metal. Com isso o grupo alcançou o topo das paradas da época e o grammy de melhor performance de hard rock dois anos consecutivos com os singles Cult of Personality e Time’s Up de seus dois primeiros álbuns respectivamente.
Escolhi Time’s Up ao invés de seu clássico de estreia por causa da coragem do grupo em seu segundo lançamento. Ao invés de tentar um disco com mais apelo comercial a banda mantém se fiel aos seus experimentos e decide brincar ainda mais com suas referências. O álbum pode parecer desconexo e diverso para alguns ouvintes, mas repetidas audições apresentam algumas pérolas escondidas como a faixa que encerra o disco, This Is the Life. Com os protestos de junho de 2020 do movimento Black Lives Matters pelo mundo, após a morte sufocante de George Floyd, a banda lança um clipe para esta faixa, com filmagens dos protestos, mostrando que mesmo após 30 anos do lançamento de Time’s Up ainda nos perguntamos se essa é a vida que queremos.
Fishbone – The Reality of My Surroundings (1991)
O ecletismo é a principal marca do Fishbone. Em um único disco a banda consegue passear com músicas com referências que flertam com o ska, punk, funk, metal, reggae e soul. Formanda ainda em 1979 por um sexteto de jovens negros estudantes do ensino médio em Los Angeles, a banda desde então vem passando por altos e baixos em sua carreira, sem perder uma base fiel de fãs, conquistando o prestígio da crítica, principalmente na virada dos 1980. A habilidade de mesclar tantos estilos diferentes de música provavelmente é o motivo que nunca fez a banda estourar comercialmente, como outros pioneiros da época como Red Hot Chilli Pepers, Sublime e Jane’s Addiction.
The Reality of My Surroundings é o ápice da banda, elevando a outros níveis o som hiperativo, debochado e crítico do grupo. Nesse álbum, com título e capa dignos de um disco de rap/hip hop, a banda se apresenta como um espetáculo ao vivo, onde cada canção funciona como um número separado com suas referências. Intercalam entre as faixas do discos interlúdios mais descontraídos quase como uma vinheta de comédia stand up, tradição de muitos artistas negros estadunidenses. Em The Reality of My Surroundings a banda se aprofunda ainda mais no som pesado do metal apresentando algumas composições tão técnicas como bandas de progressivo. Apesar de um disco longo e diverso, como muitos outros dos anos 1990, The Reality of My Surroundings é uma interessante porta de entrada pro som do Fishbone, apresentando o seu característico ska funkeado como em Everyday Sunshine, os cantos espirituais psicóticos de Pray To The Junkiemaker e o peso dos comentários sociais de Fight the Youth.
Como ficou evidente foquei apenas em bandas dos EUA, o que não quer dizer que tenham outras bandas de rock negras pela diáspora africana. Jorge Ben e Itamar Assumpção podem ser algumas das referências nossas brasileiras. O movimento zamrock na Zâmbia também é um outro forte exemplo. O que quis apresentar aqui é que a trajetória de todas essas bandas, entre sucessos e decepções, foi marcada com a experiência do ser negro em nossa diáspora. Criando um sentido de vida entre as adversidades do racismo.
Death, Bad Brains, ESG, Living Colour e Fishbone são inventivos em seus respectivos estilos e alargaram os limites do rock, e seus diversos subgêneros como o punk, funk e o metal alternativo. Claro que poderiam aparecer diversas outras bandas e discos aqui: queria fazer menção a psicodelia do Black Merda!, o funk rock do Sly Stone, o jazz elétrico de Miles Davis e muitos outros artistas, isso só permanecendo nos EUA. Porém, essa foi a minha seleção pessoal de artistas, discos e músicas que vêm influenciando minhas descobertas musicais recentes. E pra você, quais seriam outras bandas que nos fazem lembrar que o rock também é som de preto?
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