“É uma questão civilizatória reconhecer que pessoas vivem sexualmente de forma diferente”, diz Regina Soares, da Católicas pelo Direito de Decidir.
Na contramão de projetos de lei que pregam a Escola Sem Partido, a maior parte dos brasileiros é a favor de discutir assuntos ligados a gênero em sala de aula. É o que revela pesquisa Ibope encomendada pela instituição Católicas pelo Direito de Decidir.
De acordo com a sondagem, feita em fevereiro e a qual o HuffPost Brasil teve acesso com exclusividade, 72% concordam total ou em parte que professores promovam debates sobre o direito de cada pessoa viver livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais ou homossexuais.
Já 84% concordam totalmente ou em parte que professores discutam sobre a igualdade entre os sexos com os alunos. O nível de apoio varia de acordo com algumas variáveis, como idade, escolaridade, classe social e religião.
Questionados sobre alunos de escolas públicas receberem aulas de educação sexual, 88% dos entrevistados se mostraram a favor. Desse montante, 42% acreditam que tal conteúdo deva ser abordado a partir dos 13 anos, 36% a partir dos 10 anos e 10% antes dos dez anos. Outros 9% acham que o assunto não deve ser abordado e 3% não soube ou não respondeu.
De acordo com a sondagem, 87% concordam total ou parcialmente que aulas e livros informem sobre DST e prevenção. Já 80% concorda com o uso de material sobre métodos contraceptivos modernos como pílula, injeção e DIU.
Concorda que professores devem debater o direito de cada pessoa viver livremente sua sexualidade?
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Outros 88% concordam total ou em parte que professores informem sobre as leis que punem a violência. Nessa pergunta, a maior variação de resposta acontece de acordo com a escolaridade. O indicador fica em 78% entre os que estudaram até a 4ª série e chega a 93% entre aqueles com ensino superior.
Concorda que professores devem discutir igualdade de sexos?
Na avaliação de Regina Soares, doutora em Sociologia da Religião e uma das coordenadoras da organização Católicas pelo Direito de Decidir, a pesquisa indica que, em geral, não há resistência dos pais em tratar desses assuntos na escola. “As pessoas estão querendo que o Estado cumpra essa função”, afirmou ao HuffPost Brasil.
Ela destacou que os indicadores em todas as perguntas são em torno de 80% e que não há grandes oscilações entre diferentes regiões, faixas etárias, classes sociais ou religião. A maior resistência aos temas de gênero aparece entre os evangélicos entrevistados, na pergunta sobre liberdade sexual, em que 59% concordam em abordam em sala de aula direito de cada pessoa viver livremente sua sexualidade.
Essa ideia de chamar isso de ideologia de gênero quando não é uma questão de ideologia. Existe a diversidade sexual e agora ta sendo mais enfatizada pela sociedade. É uma questão civilizatória reconhecer que pessoas vivem sexualmente de forma diferente, não só heterosexual.
Na avaliação da especialista, a pesquisa aponta que o pensamento das pessoas está deslocado da base da Igreja Católica e que “seria fundamental uma revisão”. Na interpretação dela, a atuação das bancadas evangélica e católica no Congresso não representa a visão dos religiosos.
Nossas leis no que tange à sexualidade e à educação não estão caminhando para o que a maioria da população espera.
De acordo com Regina Sousa, “quanto mais tem sociedade educada e informada desde os pequenos anos mais possibilidade tem de diminuir os indíces de violência contra a mulher, gravidez indesejada e aborto”.
O Brasil é o país com maior número de assassinatos a pessoas LGBT. Nos quatro primeiros meses desse ano, 117 pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) foram assassinadas no Brasil devido à discriminação à orientação sexual, de acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia. É uma morte a cada 25 horas.
Relatório da Humans Right Watch (HRW) divulgado neste mês mostra que a média nacional é de 4,4 mulheres assassinadas para cada 100 mil mulheres.De acordo com dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo.
Quanto à violência sexual, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de estupros tentados ou consumados por ano no Brasil fica em torno de 527 mil. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2015 mostram que mulheres são violentadas a cada onze minutos no País.
A pesquisa Ibope foi realizada entre os dias 16 e 20 de fevereiro de 2017 com 2002 brasileiros com 16 anos ou mais, em 143 municípios. A margem de erro estimada é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e o nível de confiança utilizado é de 95%.
“Só uma roupa”
Desde os três anos, Chico, 7 anos, usa vestidos. Em casa, ele brincava com toalha, camisetão, lençol. “Qualquer coisa mais longa virava um vestido”, contou a mãe, a jornalista Carol Patrocínio, ao HuffPost Brasil. Na escola, foi em uma brincadeira com fantasias em que ele escolheu a peça de roupa pela primeira vez.
“A gente nunca antecipou as coisas, sabe? Sempre fomos conversando conforme elas aconteceram e com as escolas seguintes também foi assim. A gente sempre buscou lugares que estariam, pelo menos teoricamente, abertos a esse comportamento”, conta Carol.
Na classe atual, outros meninos usam saias ou vestidos. “A relação com outras crianças varia, mas tem um padrão que é bem interessante: rola o estranhamento, Chico explica que é só uma roupa ou só um brinquedo e que nada é só de menino ou de menina, a criança entende numa boa e curte junto. Depois de ir pra casa a gente vê que algumas crianças voltam a estaca zero do papo, mas outras já entendem que não tem nada de errado em brinquedos e roupas”, afirma a mãe.
Chico já estudou em quatro escolas, sendo três na capital paulista e uma em Santo Antônio do Pinhal, no interior do estado. Na atual, os educadores seguem a pedagogia democrática e os alunos participam das decisões por meio de assembléias.
Nessa escola Chico se sente a vontade o tempo todo, usa as roupas que quer, brinca com os brinquedos que quer… E ele tem uma professora incrível que trabalha questões de respeito às diferenças com as crianças. Então tudo que poderia ser um problema vira um aprendizado, sabe?
Ao contar a história do filho nas redes sociais, Carol fala da mudança que Chico faz ao redor ao quebrar os estereótipos de gênero.
Meu filho não é uma criança incrível porque ele usa vestido e brinca de boneca. Meu filho é uma criança incrível porque ele mostra para as pessoas ao redor dele que as coisa não tem que ser como elas são. Tudo pode melhorar. As pessoas podem olhar para as outras com mais generosidade.
O Decreto 55.588/10 define o direito ao uso do nome social e o respeito à identidade de gênero de travestis e transexuais. A Deliberação 125 de 2014 do Conselho Estadual da Educação e a Resolução da Secretaria da Educação 45 de 2014 regulamentam esses direitos no âmbito do sistema de ensino.
Já a Lei 10.948/2001 estabelece que é proibida toda manifestação discriminatória por razão de orientação sexual e identidade de gênero e que ninguém pode ser exposto a constrangimento ou ser impedido de acessar locais públicos ou privados por conta de suas identidades. A norma permite o uso do banheiro de acordo com a identificação de gênero.
De acordo com informações do governo do estado, 365 alunos se identificam como transgêneros e usam o nome social nas listas de chamadas.
No Distrito Federal, o projeto Mulheres Inspiradoras, da professora Gina Vieira Ponte ganhou projeção e foi expandido para 15 escolas da rede de ensino. A ideia surgiu em 2014, quando a pedagoga compartilhou biografias de mulheres como Eu sou Malala, e Quarto de despejo: diário de uma favelada. Adolescentes de cinco turmas contaram então, a história de mulheres ao seu redor, como mães, avós e amigas.
No Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II ganhou destaque ao abolir a distinção do uniforme escolar por gênero, o que permite meninos usarem saias, em setembro do ano passado. Um dos mais tradicionais do estado, o colégio tem quase 13 mil alunos e conta com 14 campi, sendo 12 na capital, um em Niterói e um em Duque de Caxias.
Em 2016, a ONU Mulheres lançou o programa Escola Sem Machismo, com financiamento bancado pela União Europeia. O objetivo é que professores abram espaço no currículo do Ensino Médio para o debate sobre os papéis de gênero.
O programa conta com seis planos de aula fornecidos gratuitamente que abordam: sexo, gênero e poder; violência e suas interfaces; estereótipos de gênero e esportes; estereótipos de gênero, raça/etnia e mídia; estereótipos de gênero, carreiras e profissões e vulnerabilidade e prevenção.
Escola sem Partido
Em discussão na Câmara dos Deputados, o PL 7180/14 altera o artigo 3º da Lei de Diretrizes Básicas da Educação (9.394/1996) e acrescenta como base do ensino o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”.
De acordo com o fundador do movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib temas como combate à homofobia e à violência contra a mulher não poderão ser tratados em sala de aula porque podem ser considerados contrários aos valores morais ou religiosos dos pais.
O projeto deve ser votado na comissão especial da Câmara sobre o tema em agosto. Se for aprovado, segue para o plenário da Casa.
Leis similares foram aprovadas no âmbito regional, mas cercadas por controvérsias. Em março, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a lei do estado de Alagoas que proibia professores da rede pública de opinarem sobre diversos temas em sala de aula e determinava que os docentes mantivessem neutralidade política, ideológica e religiosa.
Para o ministro, a Constituição assegura “uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas pelo ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado, dentre elas a mencionada liberdade de aprender e de ensinar; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a valorização dos profissionais da educação escolar.”
O próprio Ministério da Educação (MEC) já se mostrou contra a proposta. “Defendo que cada um defenda suas ideias. Mas não é um debate que se estruture como um tipo de tribunal de ideias”, afirmou ou ministro da Educação, Mendonça Filho.
Por outro lado, o MEC suprimiu da base nacional curricular comum as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”. O documento serve como referência para o conteúdo nas salas de aula. O tema também foi retirado do Plano Nacional de Educação.