O doce sabor do privilégio

Estive recentemente em um desses clubes chiques a beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Era a minha primeira vez no clube. A impressão que senti após alguns momentos de circulação, mesmo sendo tratado com cortesia pelos funcionários, foi uma combinação de deslumbre e desconforto, como se a qualquer momento fosse ser desmascarado como alguém que não deveria estar ali. Mas o dia estava lindo, a vista convidativa e o calor ameno do sol matinal acariciava o meu rosto. Relaxei, sentei a beira da Lagoa, tirei umas fotos e saquei um livro para desfrutar algumas horas de leitura diante daquela paisagem deslumbrante. Mas o incômodo já tinha se instalado.

PorAtila Roque em seu blog

 

Não consegui parar de pensar no desconforto inicial. O que tinha provocado esse sentimento de deslocamento? Afinal, não era a minha primeira vez em espaços de elite, estou bem acostumado a ser o único em certos ambientes. A vida me deu oportunidades de estar em espaços de poder e privilégio, onde normalmente pessoas com a minha origem, negro e suburbano, raramente chegam. E a posição que ocupo hoje, diretor de uma grande Fundação internacional privada, não apenas abre ainda mais o meu acesso a esses espaços de poder, como também requer um estado constante de alerta sobre o meu próprio lugar de privilégio.

Mas toda essa vivência não evitou a forte sensação de que estava invadindo um espaço onde não era convidado. Precisei parar e pensar um pouco sobre isso. Não tenho uma resposta, mas algumas aproximações.

Uma primeira ideia que me ocorreu foi constatar que aquele é um espaço de lazer reservado aos que compartilham uma ligação profunda de classe e raça/cor: um lugar de pessoas brancas de classe média alta e ricas ou detentoras de um capital social decorrente quase sempre de relações familiares. O meu desconforto era decorrente do fato de não me sentir possuidor daquilo que em inglês chamam de “entitlement” – o direito quase natural a um benefício ou reconhecimento. Certamente nem passa na cabeça das associadas daquele clube que elas não sejam merecedoras do que o espaço tem a oferecer de melhor: o privilégio de estar ali entre iguais.

Olhando em torno, durante as cerca de duas horas em que ali estive, não vi sequer um negro fora do lugar comum de prestador de serviço. A paz daquelas quadras de tênis e futebol, piscinas, os veleiros e pequenas lanchas estacionadas no hangar, a tranquilidade e a atmosfera despreocupada, sem nenhuma pressa, com a qual aquelas pessoas caminhavam pelas dependências do clube, era algo que remetia a uma intimidade quase familiar, constituída através dos laços indeléveis do privilégio. Esse foi um primeiro pensamento.

É muito bom ser rico e branco no Rio de Janeiro, mesmo estando, como estamos, no fundo do poço.

O segundo pensamento foi o quanto é difícil para as elites brancas, ricas ou de classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro abrir mão de seus privilégios. É muito bom ser rico e branco no Rio de Janeiro, mesmo estando, como estamos, no fundo do poço. Mesmo quando não se é muito rico, nem muito branco, desde que se alcance uma combinação favorável dessas duas condições, de modo a ser capaz de fazer parte dos círculos sociais protegidos em que vive a elite carioca. Sem falar que a vista é sem igual, especialmente quando se pode desfrutar dela em recantos exclusivos, resorts, clubes, condomínios e restaurantes de luxo, sem perturbações, perigos ou ruídos.

Tudo isso me levou a respirar fundo, já saindo do clube, e pensar que o caminho da igualdade passa por uma mudança somente possível com a ruptura dos espaços de privilégio por aqueles que até agora estiveram sentados a margem do banquete. O lugar do privilégio é muito confortável para que se queira deixá-lo voluntariamente. Ainda guardo na memória o que aconteceu quando de maneira muito modesta, mas extremamente significativa, se implantou a política de cotas, trazendo para o espaço da universidade pública uma população de jovens que até então não tinha o ensino superior no seu horizonte. A reação foi brutal e ainda hoje ouvimos os mesmos argumentos carcomidos de ressentimento sobre “racismo às avessas”, “mérito”, “rebaixamento da qualidade” etc.

É necessário a construção de um outro normal, mais diverso e inclusivo. Para isso é preciso abrir espaços para o protagonismo, a criatividade e a beleza da juventude das periferias e favelas. Escutar as vozes e demandas das jovens mulheres feministas que reinventam a ação política e a luta por direitos, obtendo conquistas inimagináveis há bem pouco tempo. Reconhecer os movimentos que reivindicam a cidade como território de todos, a ser desfrutado e ocupado por todos os atores sociais, na sua colorida diversidade. Abrir espaço para artistas e criadores negros ocuparem o seu lugar na mídia e nas artes, especialmente no campo do áudio visual (cinema, TV, internet), com suas narrativas e experiências, como autores, roteiristas, diretores, atores e curadores. Criar as condições para o florescimento do empreendedorismo popular, capaz de reinventar a economia local e produzir circuitos de produção solidária com enorme potencial de geração de riqueza. Qualquer um que já tenha se aproximado da vida econômica de uma grande favela sabe do que estou falando.

É preciso que o privilégio seja um lugar de desconforto e não de desfrute.

No entanto, nada disso virá apenas através de um movimento de conscientização dos que detém os privilégios, por mais importante que seja a construção de pontes e diálogos que aproximem mundos tão apartados. Eles terão que ser incentivados a abrir mão de tanto desfrute e conforto – ou pelo menos, digamos, compartilhar com um universo mais amplo de pessoas – pelo protagonismo e mobilização dos excluídos. Somente a participação ativa e a visibilidade desses novos atores sociais levará os que sempre estiveram protegidos pelos muros invisíveis da exclusão social a abrir espaço e reconhecer que não são os únicos a terem direito a ter direitos. É preciso que o privilégio seja um lugar de desconforto e não de desfrute. Esse é o nosso principal desafio se queremos superar as desigualdades que se nutrem do racismo, do sexismo e da violência que estruturam as relações sociais no Brasil.

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