Falta falar dos colaterais por Flávia Oliveira

Pouco se diz sobre perdas e ganhos de grupos populacionais afetados pela mazela original da sociedade brasileira, a desigualdade

por Flávia Oliveira no O Globo

Foto Marta Azevedo Foto Marta Azevedo

Faz quase três anos que o Brasil debate a reforma do sistema previdenciário. Noves fora a queda de braço política que, aguda no governo de Michel Temer, logrou se intensificar na recém-iniciada gestão de Jair Bolsonaro, as discussões se concentram na equação financeira, via economia de recursos, em detrimento da (necessária) qualidade da proposta. Pouco se diz sobre perdas e ganhos de grupos populacionais afetados pela mazela original da sociedade brasileira, a desigualdade. Menos ainda sobre o efeito cascata desses colaterais.

Passada a (longa) prova de fogo na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), é fundamental que o país se abra a uma reforma que leve em conta assimetrias estruturais. É o caso, por exemplo, da brutal informalidade que alcança mulheres e jovens e negros e os pouco escolarizados, aniquilando-lhes a capacidade contributiva na vida laboral e, com ela, a perspectiva de bem-estar na velhice.

Vale refletir sobre o quanto regras inalcançáveis de aposentadoria vão afetar os entrantes ou desalentar de vez quem sempre patinou no emprego com carteira assinada. A crise que eclodiu com a recessão do período 2014-2016 fez explodir o desemprego, que neste início de ano voltou ao patamar de 13 milhões de brasileiros, dado por si só dramático. Para completar, o pouco de recuperação que se vê ocorre na criação de postos precários, seja pela multiplicação dos conta própria sem CNPJ, seja via aumento do número de empregados sem carteira assinada e, por isso, alijados de benefícios trabalhistas e previdenciários.

O par de fenômenos combinados levou à substantiva elevação do total de brasileiros que deixaram de contribuir com o sistema previdenciário. Dados da Pnad Contínua do IBGE mostram que, desde 2015 (ano em que o declínio da atividade econômica começou a detonar o emprego formal), o contingente de contribuintes reduziu-se em 1,843 milhão. Naquele ano, 65,7% dos ocupados recolhiam para a Previdência; em 2018, a proporção chegou a 63,2%.

A queda ocorreu, sobretudo, entre as mulheres (67,4% para 64,6%) e os brasileiros de baixa escolaridade. A proporção de contribuintes entre os ocupados sem instrução saiu de 34% para 28,6%; de 46,5% para 43,5% entre os que não completaram o ensino fundamental; de 59,6% para 54,2% entre os que concluíram apenas o ciclo básico. Em números absolutos, nos três grupos que reúnem os trabalhadores com menor nível de renda, 3,357 milhões de brasileiros pararam de contribuir.

Não é segredo que o mercado de trabalho tem fechado as portas para quem estudou pouco. As vagas são escassas e a remuneração, modesta, o que já aponta para uma trajetória laboral de vulnerabilidade. O que se analisa pouco no debate sobre reforma é como os trabalhadores expostos hoje à precarização chegarão ao fim da carreira.

Se como autônomos ou empregados não recolhem para o INSS, terão dificuldades em comprovar o tempo de contribuição. Serão obrigados a trabalhar por mais tempo até o período mínimo de habilitação para aposentadoria – 62 anos de idade para mulheres e 65, homens; 20 anos de contribuição. Ou acabarão na rede de assistência social, via Benefício de Prestação Continuada, aquele que a equipe do ministro Paulo Guedes, da Economia, quer fixar em um salário mínimo somente após os 70 anos, em vez dos atuais 65.

Não é por outro motivo que as aposentadorias até dois salários mínimos se dão predominantemente por idade, não por tempo de contribuição (30 anos para elas, 35 para eles). Mulheres da área urbana se aposentam por idade com 63,8 anos (dado Ipea), quase quatro além dos 60, pela dificuldade de comprovar a exigência atual de 15 anos de contribuição.

Se provoca economia de recursos, via postergação de desembolsos, as regras mais rígidas de aposentadoria pós-reforma podem também desidratar a arrecadação pelo peso da informalidade ou por absoluta descrença. Especialmente entre os jovens, é crescente a percepção subjetiva de que a Previdência não lhes servirá. Menos contribuições empurrarão o Estado para o córner. No presente, queda nas receitas que cobrem os benefícios de quem já se aposentou ou se aproxima; no futuro, pressão nos gastos com assistência pelo aumento da vulnerabilidade social. Além da reforma de qualidade, é urgente reencontro do país com o crescimento econômico assentado no trabalho formal, não no precário. É isso ou mais exclusão.

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