Na adolescência, a escritora e fotógrafa Camila Cerdeira parou de ler quadrinhos de super-heróis. O motivo? Não se enxergava entre as personagens dos gibis.

por Ítalo Rômany no TAB

Cena da websérie Punho Negro, produzida por grupo da Bahia Imagem- Divulgação

Hoje, aos 30 anos, escreve sobre representatividade negra dentro da cultura pop para mostrar para as garotas que não há problema em ser mulher, negra e nerd.

“Parte da minha educação e do meu reconhecimento como negra foi trazida por meus pais por meio de referências da cultura pop. Minha mãe me falava da personagem Tempestade, que era uma deusa, uma rainha da tribo dela. Essa era minha referência do que era ser uma mulher negra”, diz Camila.

Camila não está sozinha: como ela, outras mulheres estão ocupando espaços físicos e virtuais para dar visibilidade a um modo de consumo que leve em conta, simultaneamente, os recortes de raça, gênero e classe. A ideia é aumentar a representatividade de mulheres negras nas mídias e mostrar que elas também são consumidoras, produtoras e críticas de cultura pop.

Para a escritora Camila Cerdeira, representatividade no universo nerd é importante para as negras Imagem- Arquivo pessoal

A tradutora Daniela Razia, 42, também não tinha muitas referências de personagens negros na infância. Quando criança, era a única menina do rolê que jogava fliperama, enquanto as outras garotas acompanhavam os irmãos e namorados jogarem.

“Tinha aquele sonho de levar os games para todas as meninas, para que elas conhecessem. Comecei a estudar inglês, adquiri meu primeiro console, conheci outras garotas e hoje acabei chegando aqui por causa desse meu sonho”, diz Daniela, que faz vídeos de gameplays no YouTube.

“Eu não sou aquilo essencialmente que aparece no Google. Posso ser nerd e lésbica, posso ser nerd e negra. Precisamos quebrar essa ideia”Camila Cerdeira, escritora e fotógrafa

Basta dar uma busca por imagens no Google para que a falta de representatividade do feminismo negro dentro da cultura nerd salte aos olhos. É só usar a expressão “mulher nerd” para descobrir que 99% dos resultados são ilustrações de garotas brancas e loiras.

Negra e nerd = resistência

Criadora do blog Pretas, Nerds e Burning Hell, a estudante Anne Quiangala, do Espírito Santo, queria construir um espaço onde fosse possível se colocar como negra e nerd dentro das discussões da cultura pop. A ideia surgiu em 2014, alimentada pela frustração com a falta de espaços virtuais de referência com debates sobre tal recorte no país.

No primeiro dia da criação da página no Facebook, Anne tomou um susto: já tinha mais de 100 seguidores. “Como assim? Eu achei super rápido o retorno. Mas fiquei um pouco frustrada, pois a maioria era gente branca, e esse não era o meu objetivo”, lembra. Com o tempo, as mulheres negras começaram a se identificar com as discussões. “Pela primeira vez elas estavam tendo acesso a um tipo de identidade que era renegada. Na medida que criamos um site, criamos um vocabulário para elas”, explica.

Ao assumirem a identidade nerd em um espaço majoritariamente masculino e sexista, elas se transformaram em alvos de ameaças diárias e mensagens de ódio. Anne, por exemplo, teve de lidar com ataques virtuais depois de ter publicado um texto sobre a violência gráfica à mulher nos jogos Mortal Kombat.

Anne Quiangala estudou a representação das heroínas negras na Marvel em seu mestrado Imagem- Henrique Oliveira:Divulgação

“Soube por um amigo que o meu texto tinha sido postado em um dos grupos de haters no Facebook. Quando abri a página, tinha mais de 100 comentários com os mais variados tipos de ofensas raciais. Mulher falando de jogos sempre é polêmico, já que estamos em um local muito hostil para nós que fazemos esse tipo de trabalho”, relata a estudante. “Se incomoda, é porque estamos no caminho certo”, celebra.

No extremo, os ataques chegam a conter ameaças de estupro e morte. Foi o que a blogueira Monike Aguiar sentiu na pele após ter publicado um texto nas redes sociais dizendo que a personagem Shuri, do filme Pantera Negra, era considerada a pessoa mais inteligente do universo Marvel.

“Fomos uma das primeiras pessoas que postamos sobre a Shuri, e na verdade era um texto traduzido que pegamos da própria Marvel. Eu já esperava esse tipo de ataque, mas não achei que fosse de uma maneira tão explosiva, que fosse ser tão rápido, porque eles [os nerds haters] são muito violentos quando contrariados”, diz Monike. Em 2018, ela criou, junto com a esposa, a página Negras Nerds, atualmente com mais de 24 mil seguidores.

Shuri, do filme Pantera Negra, é uma personagem cuja inteligência atiçou haters nas redes sociais Imagem- Divulgação

Um estudo publicado ano passado mostrou, por exemplo, que 81% das vítimas de discurso depreciativo nas redes sociais são mulheres negras entre 20 e 35 anos. Além disso, 65% dos usuários que disseminam intolerância racial são homens na faixa de 20 e 25 anos. Os dados estão na tese de doutorado defendida pelo pesquisador brasileiro Luiz Valério Trindade na Universidade de Southampton, na Inglaterra.

“O Facebook tem se tornado uma espécie de pelourinho moderno permitindo aos defensores de ideologias coloniais de supremacia branca a oportunidade de efetuarem chicoteamento virtual por intermédio de seus posts depreciativos. Usuários que se engajam em disseminar intolerância racial na plataforma nutrem uma forte crença de que o ambiente virtual se constitui em uma espécie de terra de ninguém”, diz Trindade no artigo publicado sobre a pesquisa.

A tradutora Daniela Razia ficou bastante chocada quando seu filho recebeu ameaças de morte em uma de suas postagens. “Eu sabia que eles [os haters] não fariam nada fisicamente, mas só o fato de ameaçarem me deixou muito mal.”

Construção de referências

Em 2018, a websérie Punho Negro apresentou no YouTube a super-heroína brasileira: Tereza, a protagonista, é negra, usa cabelo black power e é baiana. A produção do coletivo independente Êpa Filmes mostra a personagem como uma dona de casa que arranja tempo, dentro da jornada dupla, para combater os bandidos da cidade. Seu principal super-poder é a força, uma metáfora para representar a luta contra o racismo e as pressões sociais que a mulher enfrenta no cotidiano.

Produtora e roteirista da websérie, Milena Anjos, 30, conta que a proposta era quebrar o padrão imposto à mulher negra. “Carregamos esse fardo que temos que ser perfeitas, fortes em tudo, ser boas duas vezes em tudo.” A websérie teve cinco episódios e, apesar das dificuldades financeiras, deve ganhar uma segunda temporada este ano.

Outro personagem que surgiu nas redes nesse esforço de representação é a mini Gui, criada pela ilustradora Giulia Garcia, 20. Fã de cosplays, ou seja, se transformar em protagonistas de livros, filmes e até personagens históricos, ela sentia falta de referências negras. Criou a mini Gui baseada nela mesma, e publica suas ilustrações no Instagram.

“Eu não me sentia representada, uma garota apaixonada pela cultura nerd e não conseguia ver ninguém. Se existem personagens negras, eu não vou fazer cosplays de personagens brancas, quero carregar meu legado. Quando tinha 15 anos não tinha esses personagens, não tinha Pantera Negra”, diz Giulia.

Por mais visibilidade e referências

O filme Pantera Negra, produção da Marvel com heróis e heroínas negros levada aos cinemas em 2018, é apontado como um divisor de águas para as discussões de representatividade.

Mini Gui, personagem criada pela ilustradora Giulia Garcia, inspirada nela própria Imagem- Arquivo pessoal

Referências são importantes, principalmente dentro desse universo, diz a blogueira Monike Aguiar. “Sou mãe de filhos pretos, tenho que mostrar esse lado para eles. Toda criança quer ser representada. Quando saiu o filme Pantera Negra, para mim foi o máximo, eles tinham heróis ali, porque na minha época não teve isso. Sempre temos esse tipo de conversa. Essa busca por representação foi uma busca pelos meus filhos, por uma busca de identidade racial.”

Apesar de o espaço conquistado pelas mulheres negras no universo da cultura pop ter se ampliado, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Camila Cerdeira ressalta que as nerds negras também podem ocupar outros espaços que não estejam ligados ao recorte de gênero e raça. “Fui chamada não sei quantas vezes para falar sobre o Pantera Negra, mas quando sai algo sobre a Liga da Justiça, ninguém me chama. E eu também posso falar sobre isso, sei falar sobre um monte de coisa. Porém, acabo sendo procurada somente nesses momentos específicos. A gente pode falar de qualquer coisa do meio nerd.”

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