Salvem suas lives!

Você já parou para pensar em quantas lives assistiu nos últimos 4 meses? Principalmente entre março e abril o crescimento de uso das lives para entretenimento e informação cresceu em patamares não vistos até então. De acordo com dados do Youtube, desde o recorde de 8 milhões de views para o salto da estratosfera do australiano Felix Baumgartner em 2012, não se via uma movimentação tão intensa para as visualizações. Em abril, a cantora brasileira Marília Mendonça alcançou o número de 3,3 milhões de views simultâneos. Agências e produtoras assumem as lives como estratégias de marketing, muitas delas, principalmente as lives shows da quarentena, não ficam disponíveis nos canais após suas transmissões.

Expandindo os olhares para todo o movimento ocorrido nos últimos tempos percebemos que há a intensificação de usos. Para Amy Singer, executiva para o Youtube na América Latina, o modelo veio para ficar e ela avalia o crescimento das transmissões conectando ao sentimento de comunidade, e é também uma maneira da audiência estar mais próxima e em interação com os artistas, que durante um tempo ainda desconhecido, não realizará encontros externos. Para a Cisco, líder mundial em TI e Redes, e uma das gigantes a produzir estudos e dados sobre o comportamento digital de empresas e usuários, até 2021 o tráfego de dados por vídeo será de 80% e em ascensão.

“Todos estão abraçando esse formato. As pessoas descobriram que as lives foram extremamente produtivas e são benéficas para elas e para as companhias” – Laércio Albuquerque, presidente da Cisco no Brasil. Revista Exame – “Na quarentena, o mundo virou uma live” – de 23/04/2020.

Do salto da estratosfera à realidade diária de muitos profissionais até então não habituados ao uso, tanto de mídias sociais, como das próprias lives, sejam elas via Instagram, Facebook Live, Youtube ou mesmo Hangouts Meet e Zoom, uma questão transita nas minhas reflexões: a produção crítica e as memórias. É provável que, humanamente, e se não nos dedicamos a essa medição, não possamos contabilizar o número de lives assistidas em 120 dias – os rastros deixados nos dispositivos que usamos contam, nós não. Mas e se perguntássemos: quais produções críticas e memórias estão sendo geradas nesse período? É possível que consigamos dizer, em números, sobre alguns dos temas que estão sendo debatidos e que acompanhamos via lives. Podemos ainda dizer sobre seus conteúdos, emitir opiniões – vivemos a era do aplauso como método de pertença e por isso multiplicamos nossas participações, assim como podemos compreender que muitos desses temas foram gerados a partir das experiências e vivências do agora; outros, e em sua maioria, estão apenas sendo reverberados de uma outra forma, pois já integravam uma produção de pensamento extensa e profunda.

Da perspectiva ocidental de produção de conhecimento e memória, estamos gerando arquivos. Da perspectiva das tecnologias, os arquivos se tornam dados. Michel Foucault, em Arqueologia do Saber, diz que o arquivo é “o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados”, uma espécie de movimento contínuo de verificações para as construções e desconstruções dos discursos. O grande arquivo gerado pelas lives está sendo salvo? Por quem? Em que momento ele seria interessante em um processo de arquivamento e em que momento ele seria interessante em estratégias de diálogos para além dos likes e do marketing? Em uma época em que há relevo na disputa de narrativas, arquivá-las seria um método de produção de memórias e rastros de um pensamento? Ou seria a contramão dos processos de produção de conhecimento, pensamento crítico e subjetividades a partir das oralidades?

Desde o início dos eventos #blacklivesmatter ocorridos a partir do assassinato de George Floyd, a ampliação das discussões sobre racismo e tudo o que é produzido a partir de suas práticas fez com que a produção intelectual negra alcançasse um outro tipo de evidência. Alguns dizem que são neblinas nos olhos, outros compreendem como um espaço em ascensão. Contudo, o que tem ocorrido desde então é a publicização de uma produção múltipla, alicerçada em modos de ver que contemplam as realidades presentes nas ancestralidades, no contemporâneo, no saber preto. O que seria, para o saber preto, para as estratégias de ocupação dos espaços, para as reverberações dos múltiplos conhecimentos, para as estratégias de sobrevivência da população preta, o arquivamento ou não de seus conhecimentos? Como e por quem estão sendo arquivadas tais produções? Temos a prática de manter sob nosso cuidado aquilo que produzimos? Essas perguntas não se aprofundam a partir dos sentidos de propriedade intelectual ou sobre como é relevante, em uma sociedade baseada no capital, dar nomes aos produtores. Mas sim sobre a produção de subjetividades, conhecimentos e potências críticas que se tornam dados. Conceição Evaristo nos lembra, na abertura de seu livro Becos da Memória, que “entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção”. Já ouviu falar de “Big Data”? Quem são os arcontes da atualidade? É possível quebrar códigos se nos debruçarmos no entendimento de que somos consumidores e produtores/usuários e provedores?

Salvem suas lives! Do ponto de produção e arquivamento e do ponto de proteção. Na lógica de uma sociedade digital temos deixado de ser os guardiões dos arquivos de nossas produções e memórias. E esse não é um incentivo às privações dos usos e sim, uma provocação para que estejamos atentos aos caminhos da invenção, seja ela escrita ou falada.

Se nos ocuparmos somente sobre a compreensão dos caminhos percorridos para a publicização e virtualização de nossas memórias podemos pensar que nossas vidas estão “protegidas” nos centros de dados de mega corporações. Os novos arcontes ou “data centers” estão espalhados por vários países, porém, estão sob a responsabilidades de poucos. Atualmente, os cinco maiores data centers do mundo são:

Lakeside Technology Center (350 East Cermak) – EUA
Google – EUA
Apple – EUA
Microsoft – EUA
Facebook – EUA

No Brasil o datacenter da Ascenty, inaugurado em 2019, é também o maior da América Latina.

Seguimos trabalhando diariamente na produção de conteúdos, mas como quebrar códigos? Talvez não consigamos para os próximos tempos sermos donos de nossas próprias estruturas de arquivamento. Talvez isso nem seja interessante. Que diferença teria se nossos dados estivessem nas mãos do capital ou dos estados, se ambos atuam à distância da sociedade? Arrisco dizer que nossas melhores estratégias estão entre a utilização das tecnologias pretas, as criações temporárias, no arquivamento das memórias para as derrubadas dos processos de colonização e na marcação que reorienta algoritmos. Usemos sim as hashtags, #mariellepresente, #blacklivesmatter e outras tantas que possam contribuir com a distribuição da informação nos suportes que já utilizamos. Enegrecer a internet e ensinar ao algoritmo que #vidasnegrasimportam é forçar o aprendizado da máquina.

Encerro com a chamada de Ruha Benjamin, estudiosa sobre as dimensões sociais da ciência, tecnologia, medicina e escrito do livro – Race After Technology.

“Remember to imagine and craft the worlds you cannot live without, just as you dismantle the ones you cannot live within”.

“Lembre-se de imaginar e criar mundos sem os quais você não pode viver enquanto você destrói aqueles nos quais você não pode viver”.

O que é:

*arcontes — do arkheîon (arquivo) grego: inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam (…) Os arcontes foram os seus primeiros guardiões. Não eram responsáveis apenas pela segurança física do depósito e do suporte. Cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêutica. Tinham o poder de interpretar os arquivos. Mal de Arquivo — Uma Impressão Freudiana — Jacques Derrida

Dica de leitura:
Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: Olhares Afrodiaspóricos — Organização Tarzício Silva, Editora LiteraRua.

Revisão do texto: Leonardo Ramos


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