[das condições do amor para alguns de nós]

Desde muito jovens, talvez antes mesmo de brotar os primeiros pelos da puberdade dos expectados machos, ou de dar sinal o primeiro resquício de seio naquelas que se convencionou chamar de fêmea, nós – os desviados, os traidores das expectativas dos nossos pais, os pecadores, os egoístas que perseguem a todo custo [e que custo] o crime de amar e ter desejo por quem se quer – entendemos, de alguma forma, que mais dia ou menos dia passaremos pelo momento mais cruel de nossas vidas: anunciar àqueles que nos conceberam e que, até então, nos amaram incondicionalmente, que não preenchemos aquilo que tinham expectado para nós: que não somos héteros, ou que não nos adequamos no gênero correspondente às roupinhas que nos compraram antes mesmo de nascermos. E sabemos, mesmo em tenra idade, que será um luto – nosso, pela incerteza do que virá a partir daí, e deles, pela morte do filho até então moldado, que dará vida ao indivíduo que realmente se construiu por si. É sempre, até nas mais felizes situações, uma carnificina, pois sejamos muito sinceros: em uma sociedade profundamente machista, sexista e homotransfóbica, até o mais progressista dos pais não espera que tenha um filho gay, uma filha travesti, ou um herdeiro que se preste a exercer quaisquer destes ditos desvios do gênero e da sexualidade. Mas, por vezes, a carnificina passa e, por mais que deixe suas sequelas e um bocado de sangue, os combatentes feridos assinam um acordo de paz – ainda que uma trégua tácita.

Então as coisas vão fluindo e, inobstante à relutância, ao silencio acerca do dito e do não dito, ao descontentamento velado, à repulsa em gotículas de palavras afiadas, que por serem tão aos poucos, passa quase sem doer, nos esqueçamos de que para nós o amor não é incondicional; faz com que acreditemos que, a despeito de um resquício de rejeição a tudo o que releva nossa condição de desviados, somos incondicionalmente amados, embora não seja o caso. Porém, basta o mais sutil toque da realidade, nossa ou do outro, para nos colocar novamente no patamar de sujeitos suportados, de sujeitos vinculados à aceitação condicionada, de sujeito inadequados ao amor por completo de nossos progenitores. Então desaba em nós a proteção até então construída. 

“Vc é minha vergonha”… “e não quero vc na minha casa”… “vai fazer um tratamento”… “isso é nojento”. Essa foi a resposta que um amigo recebeu ao desejar feliz aniversário ao pai. No primeiro momento, ao ler o conjunto de insultos, que ultrapassa as frases expostas [optei por não relatar: 1) para não expor meu amigo e 2) para não causar ainda mais ojeriza a quem se propor a ler], respondi, quase que intocado pelo que acabara de digerir, “que passa”, “que chega um tempo em que as coisas vão voltando ao normal”, “que, como a lama e a sujeira que se assentam no leito do rio para que as águas voltem ao seu curso, tudo voltaria ao status quo ante”. No entanto, eu estava mentindo a ele, e também a mim. Será mesmo que tudo volta ao normal? Será que as piadas com tom leve não são lembretes de que não nos encaixamos mais naquele amor que já nos fora ofertado incondicionalmente? Será que o silêncio sobre uma parte tão importante de nós não é uma tentativa de nos encarcerar em nosso antigo eu? Será que as pequenas concessões que fazemos, colocando uma roupa mais escura, falando meio tom abaixo do que costumamos falar, guardando nossos namorados, ficantes e, até amigos, na gaveta daquele armário que já estava mais do que escancarado, não é uma tentativa de perseguirmos um amor que já se esgotou, ao menos em seus termos iniciais?

Será que há amor incondicional para alguns de nós?

Embora eu tenha dito que vai ficar tudo bem, talvez eu devesse ter dito que era para ele ficar bem, pois embora não haja amor incondicional – para nós –, ainda assim há amor… muito amor. A ele, há o meu, inclusive, e de todos aqueles que, justamente por todo o conjunto da obra que o compõe, decidiram ficar. 

Portanto, meu querido, fique bem.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

Mulheres negras, política e cultura do cancelamento no Brasil republicano

Em 23 de agosto de 1946, o jornal baiano...

Se Roberto Jefferson fosse negro…

Num multiverso de possibilidades infinitas pensemos se Roberto Jefferson...

Professor(a), a educação antirracista esta entre as suas tarefas históricas?

Em toda minha memória escolar, dois contextos me marcaram...

Devir quilomba e a feminização do conceito de quilombo no Brasil

Faz tempo que a imagem dos quilombos tem sido...

para lembrar

Possíveis fases de uma vida lésbica: do medo de magoar os outros ao medo de magoar-se

Muitos de nós, LGBTQIA+, precisaram passar por uma espécie...

Construindo uma comunidade de amor

Thich Nhat Hanh, monge budista, tem sido uma presença...

Documentário Mulheres Negras: Projeto de Mundo revela olhar feminino negro

Com lançamento marcado para o dia 12 de setembro,...

Eu, mulher negra…

EU, MULHER NEGRA…Eu, mulher negra…Tenho orgulho de quem sou e de onde vim.Tenho orgulho da mulher que me tornei.Aprendi desde muito cedo, a amar...

Carta ao povo preto

21 de novembro de 2020 Homem preto, poderia ser eu. Poderia ser você. Aliás, foi eu e foi você também. Porque não se matou (e...

Em terra de “Delírios Comunistas” Quem continua Gozando de todos os Privilégios é a Branquitude

A pandemia causada pelo novo coronavírus (eufemismo de “gripezinha”) foi capaz de descortinar e jogar luz para todas as desigualdades do Brasil e do...
-+=