Pelo direito de usar meu fio de conta enquanto leciono

Eu sou de Deus, prô! 

Credo prô, isso é coisa de macumba!

Prô, você é católica ou evangélica?

Prô, a gente tá com vergonha de falar, mas estamos achando que a senhora é macumbeira!

Essas foram algumas frases que ouvi nos últimos anos, de alunos e alunas de nove a doze anos de idade, de escolas públicas na periferia da cidade de São Paulo. Crianças majoritariamente negras. Essas falas são regularmente pronunciadas quando é demonstrado algum traço cultural ou história que contenham instrumentos percussivos, contos que contenham nomes de origem africana, como palavras em língua iorubá e quando eles percebem elementos simbólicos em meu corpo, como fio de contas ou mokan de braço, conhecido também como contra-egum. Isso unido aos olhares curiosos dos adultos, convites para visitar suas igrejas e um versículo da bíblia proferido na sala dos professores durante um diálogo informal!

Em 2003, foi promulgada a Lei 10.639, que prevê o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira, como um dos recursos para o combate ao racismo, pois sabemos que a falta de conhecimento é um dos alimentos para práticas preconceituosas. 

Ressaltei que o público de meu alunado são crianças de escola pública, pois estas instituições por legislação são espaços laicos, ou seja, que não é ligada a ideologia religiosa. A religião por sua vez, é um elemento histórico, cultural e identitário, para tanto, é passível de ser levado às salas de aula neste contexto. Também afirmei que estes alunos e alunas são majoritariamente negros  e negras , este é um agravante em minha opinião, pois não tem acesso ao conhecimento da História e Cultura ancestral.

Em alguns livros didáticos, sobretudo os de literatura e História, contêm alguns itans dos Òrìṣàs, porém em minha experiência percebo que muitas vezes há um constrangimento em lidar com este material e ao mesmo tempo certa curiosidade das crianças para aquele universo mítico, que é demonizado ou proibido por ideologias outras que favorecem o racismo religioso. 

A religiosidade é também um aspecto da identidade, traço de nossa subjetividade, além disso, o aspecto espiritual- filosófico, atravessa nossa autoafirmação como sujeitos, afeta nossos princípios éticos, morais e estéticos. Então a questão que trago à reflexão é, a escola como espaço de sociabilização e difusão de conhecimento tem se preparado para lidar com o racismo religioso?

Uma instituição laica como a escola, recebe todos os dias pessoas que expressam sua diversidade de crenças. Importante aqui lembrarmos que em nossa Constituição, está expresso o direito de liberdade religiosa, vejam:

Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 […]

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias […] (BRASIL, 1988).

A partir disso pergunto aos leitores deste artigo, pensando na realidade atual de nosso país, no processo histórico, em que religiões de matriz africana tem sido perseguidas, assim como seus adeptos. No país em que apesar de sua laicidade, podemos perceber que há uma declarada guerra religiosa, que ideologicamente hierarquiza e se faz presente em espaços públicos em disputa de poder. Podem estar confortáveis em demonstrar sua crença os adeptos de religiões não cristãs, como adeptos de candomblé e umbanda? No livro, Intolerância Religiosa, Sidnei afirma: “Está posto que, de modo geral, a cristianização da sociedade é mais do que um movimento de fé. Trata-se efetivamente de um projeto de poder. (NOGUEIRA, p.16, 2020) Vide a interferência religiosa na política institucional, o que afeta nas instituições públicas e na vida cotidiana da população.

O racismo religioso é uma ferramenta do racismo estrutural que inferioriza e violenta adeptos das religiões de matriz africana, é uma prática cotidiana nas micro relações que se expande para a vida macrossocial. É urgente que essa discussão seja feita nas instituições de ensino, pois crianças, adolescentes e até mesmo adultos da comunidade pedagógica, que são praticantes ou simpatizantes destas religiões, têm sido privadas de seus direitos fundamentais, que é de ter liberdade em demonstrar sua crença religiosa, digo isso por minha experiência enquanto religiosa e por observação e relatos de crianças e familiares que aprendem a esconder sua crença por medo de represália. 

Lembremos que Comunidades Tradicionais de Terreiro são símbolos da resistência da cultura e história dos povos da diáspora, africanos, africanas e afro-brasileiros e afro-brasileiras. Estes espaços foram capazes de resistir às políticas eugenistas e hegemônicas, por isso, são muito mais que templos religiosos, são redutos da História que não está nos livros didáticos.

Uma CTTro é um espaço quilombola que mantém saberes ancestrais de origem africana que são parte da identidade nacional. Um espaço de existência, resistência e (re-)existência. Um espaço político. Território de deuses e entidades espirituais pretas, por meio dos quais se busca a prática de uma religiosidade, a um só tempo terapêutica e sócio-histórico-cultural, que se volta para o continente africano, berço do mundo no Novo Mundo. (NOGUEIRA, p. 15, 2020)

A intolerância religiosa é um crime de ódio, dados estatísticos demonstram que as denúncias têm aumentado ano a ano, contudo, é imprescindível que tomemos atitudes, apenas ações concretas podem reverter esses dados.

A comunicação entre comunidade, familiares e escola deve ser mais aberta e ecumênica, afim de não favorecer as ideologias racistas e cumprir com os documentos legais. Minha sugestão é que não esqueçamos que religião é aspecto histórico cultural, que o Brasil é um país laico, constituído por uma maioria da população negra, e que religiões de matriz africana foram estigmatizadas por uma ideologia hegemônica eurocêntrica. Precisamos adotar e cobrar que práticas pedagógicas antirracistas e transformadoras sejam efetivamente implantadas nos espaços educativos.


Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 20 abr. 2022.

 NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Pólen, 2020, 160pp. (Coleção Feminismos Plurais).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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