‘Tem Gente com Fome’: há 78 anos, Solano Trindade ia preso por poema

Em 1944, o poeta recifense Solano Trindade publicava “Poemas d’uma vida simples”, seu segundo livro, impregnado pela crítica social característica de sua obra. A publicação teve boa repercussão, mas não agradou todo mundo: Trindade foi perseguido e preso pela ditadura do Estado Novo e o livro, apreendido.

A prisão teria sido motivada por “Tem Gente com Fome”, que se tornou um de seus poemas mais conhecidos. O texto poderia ser de 2022, ano em que 33 milhões passam fome e 125 milhões convivem com algum grau de insegurança alimentar no Brasil.

A Coalizão Negra por Direitos, por exemplo, se inspirou neste texto do poeta para nomear a campanha “Tem Gente com Fome”, que vem arrecadando alimentos desde início da pandemia.

“Trem sujo da Leopoldina/correndo correndo/parece dizer/tem gente com fome/tem gente com fome/tem gente com fome”, diz o poema, que anuncia as estações de trem e o entra e sai dos trabalhadores pobres com suas “caras tristes”. Na época, esse trajeto era percorrido diariamente pelo poeta, que morava em Duque de Caxias (RJ) e trabalhava na capital.

Mas o legado de Solano Trindade vai muito além de um só poema: multiartista, estudioso da cultura popular, militante pela igualdade social e racial, ele foi, ao lado de Abdias Nascimento, um dos principais intelectuais negros a movimentarem o cenário cultural e político brasileiro do século 20.

Do centro do Recife ao Embu das Artes

Filho de um sapateiro e uma quituteira, Solano nasceu em 1908 no bairro São José, na região central do Recife. Teve contato desde cedo com as manifestações da cultura popular nordestina: nos dias de folga, seu pai dançava pastoril e bumba meu boi nas ruas do Recife e o levava junto. Sua mãe pedia que lesse para ela literatura de cordel – mas também novelas e poesia romântica. E havia o carnaval, com o maracatu e o frevo, que o fascinavam.

Ele concluiu o segundo grau (equivalente ao ensino médio) e se casou em 1935 com a terapeuta ocupacional e coreógrafa Maria Margarida Trindade, com quem teve quatro filhos. Foi nessa época, aos vinte e tantos anos, que começou a atuar politicamente.

O nazifascismo estava em ascensão na Europa e o Partido Integralista – versão brasileira desses movimentos de extrema-direita – desfilava nas capitais.

Já a população negra se articulava para fazer frente à discriminação na Frente Negra Brasileira, em jornais negros e outros espaços. O poeta fundou em 1936 a Frente Negra Pernambucana e, junto com outros artistas, organizou o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, que promoveu seminários, produções artísticas, projetos educativos e assistência médica. No mesmo ano, estreou na literatura com “Poemas Negros”.

“Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.”

Trecho de poema de Solano Trindade

Na década seguinte, passou por Belo Horizonte (MG) e Pelotas (RS), onde fundou grupos de arte popular. Em 1942, se estabeleceu no Rio de Janeiro, passou a frequentar os círculos culturais da cidade e conheceu outros artistas e intelectuais negros, com quem fundou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

Junto com a esposa Margarida Trindade e do sociólogo Edison Carneiro, criou em 1950 o Teatro Popular Brasileiro, que encenava peças com um elenco formado por domésticas, operários e estudantes, e teve vários espetáculos levados a países da Europa. O grupo deu origem ao Teatro Popular Solano Trindade, ainda em atividade.

“Organizando bailados, editando revistas, promovendo espetáculos e conferências, incansável em sua atividade, poucos fizeram tanto quanto ele pelo ideal da valorização do negro.”

Sérgio Milliet, poeta e crítico literário, sobre Solano Trindade

No fim da década, lançou um terceiro livro de poemas “Seis tempos de poesia”, pintou quadros e se envolveu com cinema, atuando em alguns filmes (como “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”) e chegando a produzir (“Magia Verde”) e dirigir (“Brasil Dança”) outros.

Solano Trindade (Imagem: Folhapress)

Em 1961, publicou “Cantares do Meu Povo” e saiu de Caxias para fixar residência no Embu, município próximo à capital paulista. Ali, junto com outros artistas, ajudou a desenvolver um polo cultural que fez com que a cidade ganhasse o “das artes” no nome, já nos anos 2000. O artista morreu em 1974, aos 66 anos.

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