Marco temporal é ‘arbitrário, restritivo e inconstitucional’

Juízes têm usado a tese em questões de terras quilombolas

Arbitrário, restritivo e inconstitucional. É como o relatório da Comissão Arns de Direitos Humanos classifica o marco temporal, o projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados, que seria apreciado a partir desta quarta (7) no Senado.

A ideia política e reacionária, transformada em dispositivo de interpretação constitucional, consolida a tese de que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionais só se aplica àquelas que estavam efetivamente ocupadas por eles na data da promulgação da atual Constituição Federal, outubro de 1988. Se aprovado, esse projeto restringe o direito ao reconhecimento da posse das terras indígenas, estendendo seus malefícios também às populações quilombolas, o que aliás já está acontecendo.

Uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), a pesquisadora Givânia Silva, confirma que o marco temporal não é um assunto que afeta apenas a questão indígena e lembra que o tema já esteve em debate —ainda inconcluso no Supremo Tribunal Federal, quando os quilombolas deveriam provar que já estavam em suas terras no ato da Abolição, em 1888.

“Se você parte desse princípio, não considera todo o processo de expropriação e expulsão dos territórios, não considera o quanto essas comunidades foram desterritorializadas, tampouco a urbanização de muitas comunidades, que fez com que elas perdessem os seus territórios”, diz Givânia.

Na opinião da pesquisadora, o marco temporal é um retrocesso em um direito que está consolidado e amparado não apenas na Constituição mas também em tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT. Ela acrescenta que, votando o PL 490, foi como se o Congresso quisesse se antecipar a uma decisão que está para ser tomada pelo STF. Um pedido de vista de André Mendonça nesta quarta (7) adiou o julgamento no STF.

“É inimaginável que a gente do Brasil imponha aos povos indígenas e aos quilombolas um tempo em que eles tenham de dizer: ‘Daqui pra frente eu sou sujeito e posso ter direitos, daqui pra trás, não’. Porque isso é aceitar todos os efeitos que a invasão do Brasil promoveu sobre os povos indígenas e a escravização sobre o povo negro”, comenta a pesquisadora.

O relatório da Comissão Arns chama a atenção para o art. 231 da Constituição Federal, que reconhece o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas e as define como o conjunto das áreas usadas pelos povos indígenas para a habitação, para suas atividades produtivas, para a preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

“Não há qualquer menção na Constituição Federal a uma data certa de posse para acessar um direito originário que deve ser reconhecido —e não constituído— pelo Estado brasileiro.” A tese do marco temporal já é responsável pela paralisação e pela revisão de processos demarcatórios pelo país, impactando diretamente a vida de milhares de indígenas que, tendo seu direito fundamental ao território violado, enfrentam uma série de violências físicas e simbólicas, do assassinato à criminalização de suas atividades políticas, culturais e associativas.

Joice Silva Bonfim e Carlos Eduardo Chaves, integrantes da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), informam que a tese do marco temporal vem sendo utilizada por juízes e juízas federais de primeira instância para negar o direito de propriedade das comunidades quilombolas às terras que tradicionalmente ocupam, sob o argumento de que também teriam que estar ocupando essas terras na exata data da promulgação da Constituição para terem direito ao território.

Diante desse cenário, é urgente conceber e implementar modelos de desenvolvimento que diminuam a ganância predatória por recursos naturais e que possam incluir quem potencialmente tem melhores condições de contribuir para a preservação da Amazônia. E essas são, não por coincidência, as populações indígenas e quilombolas.

Esta coluna teve a colaboração de Flávio Carrança, da Cojira

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