No final de semana passado estive na região sudeste de Minas Gerais, na cidade de Itabira, também conhecida universalmente por ser a terra de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Adentrar a cidade é respirar a poesia drummondiana, como se ela saísse dos poros das casas centenárias e das ruas de pedregulhos, esculpidas pelas mágicas mãos do semideus santeiro Alfredo Duval, o mesmo cantado em prosa e verso pelo grande poeta: “Meu santeiro anarquista na varanda/ da casinha do Bongue, maquinando/ revoluções ao tempo em que modelas/ o Menino Jesus, a Santa Virgem/ e burrinhos de todas as lapinhas”.
Estive costeando a casa do santeiro, com um grupo de amigos. Olhando em detalhes, é uma construção simples, talhada arquitetonicamente no estilo colonial mineiro, com vedação de pau a pique e adobe sobre embasamento de pedras, com data do século 19; traz uma varanda, a mesma que Drummond menino frequentou; no alto, traz detalhes do esculpido de madeira e sua maior marca, que eternizou o seu criador –uma pequena peça sacra, uma santa, a vigiar tudo e protegê-lo.
Alfredo Duval (1873-1947) foi um homem negro, que nasceu na vigência da Lei do Ventre Livre. Como muitos negros do seu tempo ou próximo a ele, viveu de artes e ofícios. As ruas itabiranas contam sua história e guardam as marcas do seu engenho. Ele é o primeiro a trabalhar o calçamento de ruas, na época, barrentas; a construir chafarizes, facilitando o acesso de água potável para as casas e a criar os primeiros sistemas de esgoto, provavelmente usando tubulação de bambu. Foi casado com Paulina Macieira, com quem teve 13 filhos.
A lembrança de Alfredo Duval é providencial e simbólica. Itabira é conhecida como a terra do maior poeta modernista brasileiro, mas que tem no escultor –e eu diria, sem cometer erro, um arquiteto, por tudo o que fez pela urbanidade, assim como século antes, Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), o Mestre Valentim, este outro mineiro, remodelava o centro do Rio de Janeiro, onde ainda pontifica o seu jardim, na altura da Cinelândia, e o imponente chafariz, edificado na praça 15 de Novembro.
Essa origem negra de Alfredo Duval tem a ver com parte da história do quilombismo itabirano também. São algumas dezenas, pelo que sei pela boca de quilombolas e remanescentes. Eu visitei dois deles –o do Capoeirão, ainda com seu líder octogenário José Canuto Ferreira, e o do morro de Santo Antônio, sob as batutas das quilombolas Rosemary Álvares, a Rose, e Maria Gregória Ventura, outra que já passou dos oito ciclos universais.
Foi uma viagem ao passado –mas a um passado bem distante. Embora estejamos no século 21, a impressão é que regressamos 200 anos. As centenas de famílias de negros, homens e mulheres, vivem vida roceira e pouco feliz. Têm pouco acesso à tecnologia, a bens materiais e a conforto. O ambiente é envelhecido –os próprios quilombolas também estão envelhecidos e, de certa maneira, parecem sós, abandonados e com pouquíssima presença da garrulice da juventude.
Laboram a terra como seus antepassados, cuja memória é remetida ao tempo da escravidão, a cruel escravidão mineira, a do tempo da extração do ouro, das pedras preciosas e da derrama da Coroa Portuguesa, de exploração de riquezas e de mortes da gente africana. Hoje a ameaça é de outra monta, que aterroriza a população quilombola e remanescente –vem das mineradoras, do chorume e dos excrementos perniciosos contidos nas barragens.
Conversei interessadamente com os naturais das duas comunidades. Ainda é latente nos seus rostos o ímpeto da luta que marcaram os tempos de Zumbi dos Palmares e as gloriosas escaramuças que determinaram a trajetória do abolicionista José do Patrocínio (1853-1905), que deu o concurso da abolição da escravatura, há 135 anos.
Deixei Itabira com a sensação de que encontrei parte de minhas raízes e ancestralidades. Também não seria por menos: a população negra itabirana, historicamente declarada, é de 72% de toda a população do município, estimada em 120 mil pessoas, sendo 71% delas viventes em área rural, localização da maioria dos quilombos existentes.
Embora não seja baixa a percentagem populacional que diferencia negros de brancos, a representação política e econômica está na mão desses últimos, que dominam a vida pública há 40 alcaides, todos homens, ou seja, desde 9 de outubro de 1848, por 174 anos. Não é mais aceitável. Alguma coisa precisa mudar, e para ontem.