A verdade é que esse mundo é uma Ameaça. Uma Ameaça a certas gentes. Uma Ameaça a certas não-gentes. Uma Ameaça a redes, a mundos, a esse planeta, a vida, a existência, não de todos, mas de quase todos. Mesmo sendo uma grande ameaça, não é para todos, pelo menos na medida em que atravessa determinados corpos de modo mais latente que outros. O processo de expansão colonial fez com que a balança da existência, que outrora estava em equilíbrio, pendesse a morte sem igual antes: genocídio, epistemicídio, escravidão, racialização, binárização – Europeização, diria, fazendo uso de uma das suas próprias criações. O processo colonial fundamentou-se basilarmente nesses, e a partir deles destruiu Abya Yala e construiu a moderna América. Nós aprendemos a ser europeus, a todo custo, ser europeus nos foi imposto, nos é imposto, pois o colonialismo não se reduziu ou foi apagado como uma chama que consome toda vida em um incêndio. Ele continua a queimar, e está queimando tudo – exceto as cinzas que ele mesmo criou-, sem que alguns de nós percebamos, sem que alguns de nós consigamos nos ater que essa chama, que marca nossos corpos e enjaula nossa subjetividade, está em todo lugar, não a todo momento, em maior ou menor medida, mas essa sim, nas sociedades coloniais-capitalistas, são onipresentes, mas não onipotentes. É uma das apreensões de Foucault que à todo poder se instaura, também, uma resistência. Aqui, entre os Condenados da Terra, essa prática se dava há muitos e muitos séculos, mas o negro e os indígenas não resistem, não é? ‘‘Eles são essencialmente hostis’’. Do mesmo modo que hoje o negro vendendo na 25 de março ou no trem não trabalha, não tem condições de ser reconhecido como trabalhador, ele tem que ser tratado, e torna-se assim, como um criminoso. ‘‘Onde já se viu, sonegar impostos assim? Quanta injustiça com aqueles que trabalham duro para pagar os impostos e sustentar essa sociedade!’’.
Mas a verdade é Senhor, Professor, Gestor, Doutor que nós somos tudo e nada disso. Somos àgua, dissidência, potência, subversão, ação. Sim sou negro, mas dissidido dessa posição de subalternidade à mim atribuida, não me encaixo nas normas, formas e saberes que aprendestes sobre mim, torno-me bluesman, torno-me negritude. Sim sou puta, sou travesti, quebro seus estereótipos fronteiriços binários racionalizantes do que é gênero, corpo, sexualidade, trabalho e afeto, do que é a realidade, sou uma trabalhadora que habita corpos-mundos através do afeto e do prazer, não dá dor e do ardor da chama. Senhor Professor Gestor Doutor, não te pedi que me desse esse remédio, mas exijo que me escute. Senhor Professor Gestor Doutor, por quê acha que sabe mais sobre meus fluídos, meu corpo, minha psique, meu espírito, minha vida, minha existência sócio-coletivizada entre redes e mundos humanos e não humanos, do que eu? Senhor Professor Gestor Doutor, não sou esquizofrênico porque os seguranças me seguem em quase todas as lojas, NÃO SOU DOENTE. Senhor Professor Gestor Doutor, não tenho disforia por quebrar com a jaula que faz arder meu corpo, me queima minha pele e prende minha subjetividade em arbitrárias fronteiras de gênero, sexualidade e afetos, NÃO SOU DOENTE.
Senhor Professor Gestor Doutor, me escute, eu falo, eu penso, eu vivo, eu sinto, eu crio, eu afeto, eu sou afetado, eu escuto, eu danço, eu canto, eu ando, corro, eu amo, eu sangro, Senhor Professor Gestor Doutor, eu sou humano, tão humano quanto qualquer outro branco, cis, hetero, homem e qualquer um que cabe nas jaulas, Senhor Professor Gestor Doutor! Senhor Professor Gestor Doutor, namoral mesmo, foda-se sua ciência, eu sei o que sinto, o que sou, não preciso de cura, não preciso que me explique quem sou, hábito minha pele há tempo suficiente para conhecer meu corpo-existência-afeto, para saber que instaurei mundos à cada contato-afeto, à cada dor-desespero, e que a cada desprezo que subalterniza e assassina àqueles que se parecem comigo e minha ancestralidade fui corajoso o suficiente para continuar a existir e mais que resistir, lutar.
Com a mão erguida, punho cerrado, eu grito: fogo nos racistas, nos transfóbicos, nos homofóbicos, nos machistas, no discurso médico-jurídico-psiquiátrico e nos eurocêntricos cientistas-cientificistas.
Senhor Professor Gestor Doutor, VAI SE FUDER!
Este texto é uma crônica teórica-poética escrita por José Farias, militante do Emancipa Saúde – Núcleo da Rede Emancipa, graduando em Saúde Pública e pesquisador pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP)
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