Temores bem fundados

“O que vai melhorar nossa vida é a política.

por Edson Lopes Cardoso Do Brado Negro

O artista plástico e escritor pernambucano José Cláudio da Silva, ao se definir como negro, há mais de trinta anos, utilizou as seguintes expressões: “Tenho medo de fardado, tenho medo de rico, tenho medo de lei, tenho medo de doutor” (“Redação sobre minha cor”, Novos Estudos Cebrap, v. 2, 1, p.73-75, abr. 1983).

A definição foi elaborada por quem se percebia, com seus temores, num dado contexto, envolvido por um conjunto de relações e instituições ameaçadoras. Eu sou aquele que, por ser quem sou, temo o poder do dinheiro e da justiça, a força das armas e do prestígio social.

Podermos dizer que, em razão das circunstâncias, a ideia de ser negro se organiza em torno de um imenso temor, que José Cláudio articulou a hierarquias e privilégios. Quem somos? Somos aqueles que, nesse tempo e nesse espaço, temos razão de sobra para sentir medo.

O registro desses padrões de percepção é importante e está ao alcance de qualquer um poder avaliar em profundidade como, nas últimas três décadas, nossos medos se reforçaram e se ampliaram. Ficamos curiosos também para conhecer como José Cláudio conseguiu fazer a organização visual dessa experiência. Sua arte não pode ter ficado imune a essa apreensão de nossas circunstâncias. Vamos conhecer o acervo de José Cláudio da Silva?

No momento em que escrevo há grande receio de que a reforma ministerial mutile definitivamente a Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Esse também é um medo antigo. Desde 2003, ano de sua criação, a Seppir convive com o assédio obstinado de adversários e de “amigos” da base aliada, com a insegurança e a imprevisibilidade.

Ao longo dos anos, em todas as turbulências, nas mais diversas conjunturas, rumores disseminavam a insegurança quanto ao futuro do órgão. Parece que já nasceu doente terminal, cujo obituário está redigido em todas as redações.

O motivo alegado de contenção de gastos, face às necessidades do Estado, é insustentável. Até as pedras sabem, na Esplanada, que a boa gestão das finanças públicas não está na dependência da continuidade ou não da Seppir e seu minguado orçamento.

Independente de seu tamanho ou de sua força, de seu dinamismo ou eficiência, a Seppir incomoda. Nós encontramos políticos da base aliada ou não encarando a Seppir do mesmo ângulo favorável a sua extinção, porque estão todos substancialmente comprometidos com a ideia de que aos brancos, por sua superioridade intrínseca, deve caber a captura do Estado.

A existência da Seppir sugere que, na formulação e execução de políticas públicas, o Estado inclina-se a incorporar uma perspectiva inédita. Pouco importa se vai priorizar a fundo o interesse de descendentes de africanos, o que conta é que essa possibilidade se abriu, com algumas conquistas, e isso é inaceitável. A Seppir, portanto, incomoda por sua dimensão político-ideológica e não porque amplia o gasto público.

Estamos sendo arrancados dos ônibus e linchados, o racismo evangélico invade, queima e destrói terreiros de candomblé e umbanda, a política de segurança pública mais consequente espalha cadáveres negros em todo o país – é nessa moldura que devemos buscar apreender os sentidos mais profundos das restrições que se anunciam para a Seppir.

A conjuntura exige de nós que superemos nossos medos de fazer política. Segundo Hannah Arendt, a tarefa e objetivo da política é a garantia da vida em seu sentido mais amplo ( O que é política? 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007). Além da ameaça à Seppir, as agressões afetam a continuidade de valores culturais e religiosos e nosso próprio direito à existência. Torçamos para que uma consequência importante dessa conjuntura seja o crescimento de nossa participação política.

Edson Lopes Cardoso é jornalista e doutor em Educação pela USP

+ sobre o tema

Especialistas discutem atuação da polícia e redução de homicídios no Rio

A Segurança Pública estará no centro das discussões de...

Por que nunca precisamos de cotas para negros no futebol?

Por Felipe Carrilho, colunista do Escrevinhador "Nós não temos...

para lembrar

Líderes da ONU pedem mais ação para acabar com o racismo e a discriminação

Esta terça-feira (16) marcou a abertura na ONU da...

Água de beber e de viver no Quilombo Santa Rosa dos Pretos

Não precisa muito mais do que alguns minutos para...

Coisas que uma sociedade racista faz por você

Você, um belo dia, está na faculdade e vem...
spot_imgspot_img

Marca de maquiagem é criticada ao vender “tinta preta” para tom mais escuro de base

"De qual lado do meu rosto está a tinta preta e a base Youthforia?". Com cada metade do rosto coberto com um produto preto,...

Aluna é vítima de racismo e gordofobia em jogo de queimada na escola

A família de uma adolescente de 15 anos estudante do 9º ano do Colégio Pódion, na 713 Norte, denunciou um caso de racismo e preconceito sofridos...

Atriz Samara Felippo presta depoimento em delegacia sobre caso de racismo contra filha em escola de SP

A atriz Samara Felippo chegou por volta das 10h desta terça-feira (30) na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, no Centro de São Paulo. Assista o...
-+=