O mandato do vereador Renato Freitas (PT) foi cassado na última sexta-feira pela Câmara Municipal de Curitiba, no Paraná. A acusação? Ter feito um protesto numa igreja pedindo justiça nos casos de assassinatos do congolês Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho. A cassação é tão absurda, mesmo num país racista como o Brasil.
Renato é um político negro e jovem, tem 37 anos e foi eleito com mais 5 mil votos para câmara dos vereadores. É graduado e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Penal, Criminologia e Sociologia da Violência. É uma voz atuante nas reivindicações e pautas antirracistas na cidade.
No dia 5 de fevereiro deste ano, o vereador participou de um ato de repúdio aos assassinatos de Moïse e Durval. O protesto foi organizado pelo Coletivo Núcleo Periférico, e a participação de movimento de mulheres e do movimento negro. O local escolhido era bastante simbólico: a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, inaugurada em 1737. A igreja foi construída para os escravizados da época, que eram proibidos de frequentar as outras igrejas.
Dias após o ato, vereadores, todos homens brancos, entraram com o pedido de cassação alegando quebra de decoro de Renato Freitas. Alegam ainda que o protesto foi ilegal e que a conduta do parlamentar foi “extremamente grave” e “feriu a moral coletiva perante a sociedade”. A arquidiocese de Curitiba soltou uma nota pedindo para que o mandato do vereador não fosse cassado. O texto reforça o compromisso da Igreja na luta antirracista e endossa os atos contra o racismo, embora reconheça que tenha havido “excesso” no ato.
Fiquei pensando na palavra “excesso”. Então quase todos os dias homens e mulheres negras são vítimas de violência, há séculos o racismo incide nas vidas dessas pessoas, ano após ano o preconceito segue e um ato de repúdio pedindo um basta a tudo isso ainda é visto como “excesso”? A reação à violência do racismo é sempre comparada ao exagero.
Lembro outro episódio ocorrido na USP, em 2015, quando um grupo de alunos negros entrou numa das salas da universidade, interrompendo uma aula para discutir a implantação das cotas raciais. Na ocasião, a professora se recusou a parar a aula e discutir o assunto. O argumento dos estudantes negros era de que “nunca era o momento”. Lembro também que houve o discurso de “excesso” ou “exagero” por parte dos estudantes, assim como pessoas que condenaram a postura dos alunos negros.
Talvez o óbvio ainda precise ser dito: resolver as questões raciais é urgente e não pode esperar. Não existe democracia com racismo. Interromper uma missa para reivindicar justiça e o fim do preconceito é o mínimo diante de tanta violência. Quando pensamos que estamos avançando, atitudes como as dos vereadores brancos do Paraná só comprova que ainda estamos longe de uma equidade racial no Brasil.
As violências seguem pelo Brasil contra políticos negros e negras. No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde foi eleita a maior bancada negra da história de Porto Alegre, os 5 vereadores são constantemente ameaçados e são muitas vezes hostilizados e atacados por parlamentares brancos, como foi o caso da vereadora Mônica Leal (PP), autora de um projeto aprovado pela Câmara que obriga os vereadores a ficarem de pé durante Hino do Rio Grande Sul. O hino, para quem não conhece, é de cunho racista e não representa a comunidade negra do Estado.
Este é um dos grandes pactos da branquitude: impedir que os movimentos negros se organizem para dar fim aos privilégios e à violência do racismo. Sempre haverá um “esse não é momento” ou “houve excesso” ou “isso é exagero”. O fato é que no último dia 5 de agosto o mandato de Renato Freitas foi cassado por “procedimento incompatível com o decoro parlamentar”. O placar foi de 23 votos favoráveis, sete contrários e uma abstenção.
A cassação de um vereador negro por esses motivos é uma vergonha e escancara o racismo no Paraná. Mais do que isso, atenta contra a própria democracia, porque um ato como esse remonta o modus operandi dos tempos da ditadura em que políticos eram cassados sem nenhum argumento legal, a não ser o de discordarem do governo autoritário.
Tempos difíceis em que ainda precisamos lutar para provar que o racismo é estrutural e que ele está em todos os lugares, inclusive numa Câmara de vereadores, a casa do povo.