A colonialidade dos discursos sobre o clima: abordagens interseccionais e decoloniais para a justiça climática

Introdução 

O conceito predominante de desenvolvimento e progresso foi moldado pelo colonialismo, uma forma monocultural de dominação que dita nossas interações com os ecossistemas e entre nós humanos. Ele perdura a partir da colonialidade do poder1 e do sistema colonial de gênero2, que andaram de mãos dadas com a sede capitalista de crescimento econômico e acumulação baseada na exploração da natureza, dos corpos e do tempo para suprir o consumo excessivo de material e energia, especialmente para o desfrute das elites, do Norte global em geral e dos setores privilegiados do Sul.

O que chamamos de mudança do clima é um processo que foi acentuado desde a colonização europeia de Abya Yala/América Latina e globalizado ao longo dos séculos desde 1492. O filósofo Olúfẹ́mi O. Táíwò identifica os séculos XVII a XIX como o período em que as potências europeias estabeleceram o “Império Racial Global”, uma ordem econômica mundial em que os países imperialistas alavancam o domínio geopolítico para baratear os recursos do Sul global. Isso cria um intercâmbio desigual de matérias-primas, energia, terra e mão de obra, construído com base na exploração do trabalho doméstico e de cuidados realizado por mulheres, pessoas de gênero dissidente, migrantes, camponesxs e trabalhadorxs empobrecidxs, especialmente as populações negras e indígenas, persistindo como um dos maiores subsídios históricos ao capitalismo neoliberal. Essa dinâmica prende os países do Sul à base da cadeia de valor global, em vez de permitir a alocação dos bens comuns para desenvolver uma capacidade industrial soberana e condições de vida dignas no Sul, para todes. Em vez disso, esses recursos são mobilizados em torno do consumo e da manutenção do domínio no Norte global.

Vários relatórios descrevem esse legado extrativista, por meio de números preocupantes de subsídios investidos na destruição de territórios e comunidades em todo o mundo. Os sete maiores emissores históricos também estão entre os 10 maiores gastadores militares globais (WEDO & CFFP, 2023). Os gastos militares das nações ricas (US$ 9,45 trilhões entre 2013-2021) superam amplamente o financiamento climático (US$ 243,9 bilhões), enquanto os subsídios aos combustíveis fósseis atingiram US$ 7 trilhões em 2022 (TNI, 2022), quase o dobro dos gastos globais com educação (Carrington, 2023). A proliferação contínua da guerra e do extrativismo ameaça a dignidade humana e exacerba a destruição dos territórios das comunidades marginalizadas em zonas de sacrifício racial (Achiume, 2022), que são as regiões que a degradação ambiental tornou perigosas e inabitáveis. Essas áreas abrigam, em sua maioria, grupos marginalizados racial, étnica ou nacionalmente, como os povos Indígenas, territórios ocupados pela colonização e até mesmo bairros racialmente segregados no Norte global (Achiume, 2022). 

O capitalismo racista e patriarcal, que perpetua genocídios da Palestina à Nicarágua, tem servido como o princípio organizador do apartheid climático (Táíwò, 2020). Isso forjou cadeias de dependência que permitem a subordinação racista do Sul. Defensoras e defensores territoriais pagam com a própria vida: quase 2.000 foram mortas/os entre 2012 e 2022, sendo que a Colômbia continua sendo o país mais mortal. Defensoras/es Indígenas e Afrodescendentes enfrentam violência desproporcional, principalmente na Amazônia, onde ameaças, tortura e violência são realidades cotidianas (Global Witness, 2024).

Descolonização de narrativas e mecanismos climáticos em um mundo persistentemente colonizado 

A troca desigual de matérias-primas, energia, terra, trabalho e tempo, catalisada desde os tempos coloniais, solidificou amplamente a concentração de poder e privilégio no Norte e as elites no Sul. Esse processo que solidificou o “império racial global” não só se materializou por meio da expansão das zonas de sacrifício racial, mas também de forma epistemológica e ontológica. As formas como vemos, tratamos e sonhamos com nossos mundos estão conectadas às realidades materiais de exploração, pilhagem e eco-etno-geno-epistemicídios. A colonialidade do poder, do gênero e da natureza são uma forma duradoura de manter a distribuição desigual de materiais e trabalho entre as nações. Ela é, acima de tudo, evidenciada na forma como as visões de mundo coloniais são hegemônicas ainda hoje, desde as instituições estatais até as normas e os discursos culturais.

Nossas visões de nós mesmas/os, de nossas espécies irmãs e de nossos territórios ainda estão acorrentadas aos sistemas binários que a colonização infligiu a nós, colonizades, mas também aos colonizadores. Essa forma oposicionista de organizar nossos (eco)sistemas reduz as possibilidades de reparo e justiça no presente e no futuro. Ela seca as fontes imaginativas para os mundos que precisamos para florescer e viver com dignidade. Isso nos mantém sobrevivendo com as poucas gotas que o capitalismo nos força a engolir dia após dia. Gotas do sistema binário do gênero que violam e assassinam corpos que não se conformam com ele. Gotas da falácia da eficiência que suga nossa criatividade, nosso descanso e nosso cuidado umas/uns com as/os outras/os em nome do lucro. Gotas da supremacia branca, que continua protegendo e colocando no poder aqueles/as que se beneficiaram com a escravidão, enquanto encarcera corpos negros e migrantes por quererem se libertar e romper a imposição colonial de fronteiras e despossessão de territórios, que destruíram as formas coletivas de viver e experimentar o mundo. 

Podemos experimentar os mecanismos de colonialidade em todos os aspectos da vida social, por isso vamos desvendar alguns deles em mecanismos e narrativas climáticas. Exercitamos uma crítica descolonial de diferentes narrativas climáticas predominantes na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e além dela. Nossa abordagem descolonial concentra-se em agentes subjugados históricos e atuais e em suas narrativas em busca de (re)tecer novos mundos de justiça, comunidade e dignidade para todes (Maldonado, 2020).

Nós nos concentramos em três narrativas climáticas: tecnologia, transição justa e finanças, conectando-as para mostrar como elas se sustentam mutuamente. As análises se baseiam em nossa experiência participando das negociações da UNFCCC como parte de grupos interconectados da sociedade civil, como o grupo de mulhere e gênero (Women and Gender Constitutency); em nossa pesquisa sobre justiça climática, decrescimento, abordagens descoloniais, queer, feministas e interseccionais. A colonialidade nas narrativas sobre o clima sustenta as ações climáticas na base duradoura da escassez, dos princípios binários e do extrativismo predatório.

Tecnologias climáticas: a nova face do colonialismo do carbono

Sob a aceleração do capitalismo, o mundo corre contra o tempo por meio de uma visão de túnel do carbono, concentrando-se estritamente nas emissões e ignorando as conexões sistêmicas entre o apartheid climático e o agravamento das crises globais, como perda de biodiversidade, poluição, esgotamento de recursos e aumento de desigualdade, ignorando os limites planetários. A “métrica do carbono” surge como uma ferramenta de quantificação limitada, criando uma ilusão de progresso por meio do comércio de emissões, enquanto a degradação ambiental real continua (Bringel & Svampa, 2023). 

Nos últimos anos, algumas tecnologias foram popularizadas e comercializadas como compensações positivas para alcançar emissões “líquidas zero” (net zero em inglês), embora sejam distrações perigosas, muitas vezes arriscadas, não comprovadas e exijam grandes extensões de terra. Exemplos dessas falsas soluções incluem a geoengenharia (como o gerenciamento da radiação solar e a fertilização dos oceanos), a captura e o armazenamento de carbono (bioenergia), as soluções baseadas na natureza (NbS) e os mercados de carbono (Cortés et al., 2022). 

O que os planos de emissões “líquidas zero” significam é que as emissões – e com isso os processos de extrativismo e exploração – continuarão, mas serão compensadas em algum lugar distante dos impérios globais. Em suma, essa é uma licença para “queimar agora e pagar depois”, continuando a aumentar as emissões enquanto as compensações de carbono vêm às custas do deslocamento forçado e das violações dos direitos territoriais coletivos no Sul global, e negligenciando a apropriação histórica desproporcional dos bens comuns atmosféricos (Fanning & Hickel, 2023). Essa convicção de que a tecnologia pode resolver todos os problemas da sociedade, também conhecida como “tecnochauvinismo”, reforça a confiança excessiva em soluções baseadas no mercado como resposta às mudanças climáticas.

No caminho para a COP30, o governo do estado anfitrião do Pará tem se apressado em fechar acordos de colonialismo de carbono que pareçam verdes aos olhos do mundo. Durante a Semana do Clima de Nova York de 2024, o governador Helder Barbalho concordou em vender US$ 180 milhões em créditos de carbono no Pará. O mercado de carbono é alimentado por consumidores/as privilegiados/as que, ignorantemente, caem na armadilha da compensação de carbono, e também pela ganância de multinacionais e países altamente emissores, que se aliam a autoridades locais para impor contratos abusivos contra os povos da floresta. Os compradores foram a coalizão LEAF, composta por multinacionais poluidoras, incluindo a Amazon, a Bayer, a Fundação Walmart, além dos governos imperiais da Noruega, do Reino Unido e dos EUA. O acordo, celebrado pela mídia neoliberal como um marco inédito para a preservação, é duramente criticado por grupos afetados de povos Indígenas e da floresta e por ONGs socioambientais devido à falta de transparência. Em 2025, o Ministério Público (MP) recomendou a anulação do acordo, uma vez que este previa a venda antecipada de créditos de carbono, o que contraria a lei nº 15.042/2024. A líder Indígena Alessandra Korap Munduruku protestou: “Nossas lideranças não foram consultadas, nos venderam como uma mercadoria”.

Revelando o continuum colonial em narrativas de transição justa

Até 2050, estima-se que haverá um grande aumento na demanda por determinados minerais, de até quase 500%, especialmente aqueles concentrados em tecnologias de armazenamento e transmissão de energia, como lítio, grafite e cobalto. Isso faz com que, especialmente África e América Latina sejam as despensas desses chamados “minerais críticos” ou estratégicos, para sustentar o status quo do Norte global

Cerca de 85% das reservas mundiais de lítio estão localizadas no chamado “Triângulo do Lítio”, que compreende o norte da Argentina, o sul da Bolívia e o Chile. O extrativismo predatório verde se reorganiza para fornecer baterias para veículos elétricos, bem como por meio do desmatamento e da exportação maciça de madeira balsa, usada na construção de pás de turbinas eólicas. A categorização de minerais “críticos” ou “estratégicos” responde ao tecnochauvinismo imperialista que mercantiliza territórios para exploração, justificados como essenciais para o funcionamento de tecnologias, economias e forças armadas de potências hegemônicas, como os EUA e a UE, que há décadas formalizaram por listas essas categorias para sua satisfação.

Dando continuidade aos padrões coloniais, os países imperialistas e as grandes corporações alavancam o domínio geopolítico, propondo novos acordos que perpetuam a dinâmica da troca desigual. Os minerais essenciais consumidos predominantemente pelos países “centrais” são extraídos de países da “periferia” por multinacionais, reforçando as narrativas de “subdesenvolvimento” e a dependência da exportação de matéria-prima.

Em meio a debates acalorados sobre a transição justa no país anfitrião da COP30, o governo Lula propõe hipocritamente a extração de petróleo da foz do rio Amazonas, com a premissa de financiar a transição de energia renovável do Brasil e atingir as metas “líquidas zero”. A resistência vem das comunidades urbanas periféricas e ribeirinhas: Suane Barreirinhas, ativista da Barca Literária, e moradora da comunidade de palafita Vila da Barca na capital do Pará, declarou em um protesto em fevereiro de 2025 em Belém: “É tempo de usarmos a COP30 para ecoar a voz de quem sente na pele a crise climática: pescadores, ribeirinhos e crianças. […] Que este espaço, o nosso rio, seja palco da nossa luta contra esse “desenvolvimento” que nos afeta. Já vimos o desastre de Belo Monte e não aceitamos a perfuração na foz do Amazonas” 

Essa transição corporativa, focada em soluções tecnológicas, mudanças na matriz energética e eletrificação da economia, ao mesmo tempo em que mantém os níveis imperiais de consumo, perpetua a falácia do crescimento econômico indefinido e assegura o status quo da elite. Ironicamente, os países do Norte global se apresentam como vanguardistas na redução de emissões e na proibição de indústrias sujas dentro de suas fronteiras nacionais, enquanto aumentam as importações de combustíveis fósseis do Sul global. Hamza Hamouchene (2020) observa: “Deslocar os custos de um setor tão destrutivo do Norte para o Sul é uma estratégia do capital imperialista na qual o racismo ambiental está associado ao colonialismo energético”.

A dívida ecológica e histórica que o Norte tem com o Sul cresce enquanto é obscurecida pelas armadilhas intencionais dos sistemas financeiros construídos pelo próprio Norte. Isso empurra os governos do Sul para o extrativismo predatório e a expansão das exportações para pagar a dívida impagável em moeda estrangeira, criando um ciclo vicioso de desigualdade e destruição (Pacto Ecossocial do Sul, 2023).

Para romper essa ordem econômica abusiva, é necessário descolonizar nossos sistemas de crença e poder e, acima de tudo, nossas relações com os bens comuns, como a terra, o sol, o vento, a água, outras comunidades e espécies. Precisamos de uma transformação, do discurso à ação, na maneira como abordamos a “natureza”, para reconhecer nossa dependência e nossa parte intrínseca nela. Uma visão queer feminista para uma Transição Justa reconhece nossa interdependência ecossistêmica com outras espécies e comunidades. Ela dignifica o trabalho ao tornar todas as suas formas visíveis e valiosas, sem discriminação ou divisões binárias baseadas em gênero, raça, status migratório ou acesso a recursos.

Da exploração à salvação: questionando as raízes coloniais do financiamento climático

Os mecanismos financeiros desempenham um papel fundamental no apoio à ação climática. No entanto, o atual cenário de financiamento climático, dominado por empréstimos em vez de doações, perpetua um ciclo de dívida e dependência para as pessoas e territórios mais afetados pelo apartheid climático. O financiamento climático opera sob uma narrativa colonial de caridade na qual os colonizadores passaram de saqueadores a salvadores e doadores, definindo o ritmo e qualificando o que é progresso e desenvolvimento. Os discursos de financiamento climático enquadram as obrigações dos países do Norte como caridade, em vez de responsabilidade histórica pela dívida ecológica do Norte em relação ao Sul. O Fundo Verde para o Clima exemplifica isso em declarações que celebram “a generosidade dos países contribuintes” em vez de reconhecê-la como obrigação.

O Banco Mundial, entre outras instituições financeiras neoliberais, exerce um poder significativo sobre os mecanismos e a distribuição do financiamento climático. Criadas em 1944 por 44 países quando a maior parte de África continuava colonizada3, essas instituições mantêm as raízes coloniais por meio de decisões antidemocráticas e condicionalidades de empréstimos. Os programas de austeridade dessas instituições propõem a redução de salários, preços e investimentos sociais, priorizando a sustentabilidade fiscal e da dívida em detrimento da dignidade da vida.

De 2011 a 2020, aproximadamente 95% do financiamento climático público e privado foi fornecido na forma de retorno, principalmente por meio de empréstimos. Em 2021, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – indica que o financiamento público climático dos países desenvolvidos, fornecido bilateralmente e por meio de canais multilaterais, alcançou US$ 73,1 bilhões, dos quais mais de dois terços (72%) foram na forma de dívida.

A criação de novos pacotes de empréstimos condicionais para países empobrecidos altamente endividados exige que estes reduzam alocações orçamentárias para programas de proteção social, maternidade e creches, programas de apoio a vítimas de violência de gênero, subsídios sustentáveis para alimentos ou energia e serviços públicos básicos, como educação, saúde, moradia, água e saneamento (Serafini & Fois, 2021; Achampong, 2023; Youba et al., 2023).

Isso afeta desproporcionalmente as mulheres e as pessoas de gênero dissidente, especialmente aquelas que sofrem desigualdades múltiplas e interseccionais. Devido ao seu papel predominante na reprodução social, estruturado por uma divisão sexual, racial e geográfica do trabalho, seu trabalho doméstico e de cuidado não remunerado é frequentemente usado como um “amortecedor” para cortes nos serviços públicos, aumento a pressão por mais trabalho sobre grupos sociais já altamente marginalizados.

Caminhos para a justiça climática descolonial e a transformação socioecológica

Reparações

O Império Racial Global gerou, desde 1492, deslocamento forçado, genocídio, extinção de espécies não humanas, guerras, prisão, poluição, pandemias, para citar apenas alguns de seus efeitos nocivos. Como ativistas acadêmicxs, evitamos reforçar práticas extrativistas predatórias em nossas relações de trabalho. Cultivamos o cuidado em nossas responsabilidades individuais e, ao mesmo tempo, entendemos que a reparação e a justiça só podem ser construídas e alcançadas coletivamente.

Reconhecer os contextos coloniais significa ir além do que o acadêmico martinicano Malcom Ferdinand chama de “simpatia sem conexão”, que seria a conscientização sobre as injustiças globais sem o  reconhecimento de como os privilégios estão historicamente ligados às injustiças. O autor se refere, nesse sentido, a como os grupos ambientalistas do Norte global, em sua maioria brancos, excluíram continuamente as demandas antirracistas, antipatriarcais e descoloniais do seu ativismo ambiental (Ferdinand, 2021).

Ao compreender os vínculos histórico-estruturais entre o passado e o presente que moldam nossas diferenças coloniais hoje, reconhecemos que os/as colonizadores/as responsáveis pelo que hoje chamamos de “perdas e danos” têm uma dívida imensurável com os povos e seres despossuídos e explorados. São perdas e danos quantificáveis e não quantificáveis, permanentes e irreversíveis, inclusive a perda de entes queridos, culturas, idiomas e lares, dizimados durante a construção e a manutenção do Império Racial Global. 

Mesmo que seja uma tarefa incomensurável atribuir um valor monetário a esses processos, acabar com o apartheid climático exige que os países historicamente responsáveis e as multinacionais respondam às suas obrigações com maior responsabilidade. Em última análise, além das reparações monetárias e da restituição de objetos saqueados, é possível construir novos horizontes, além do Império Racial Global, para que tenhamos “um mundo onde as pessoas possam se relacionar umas com as outras em termos de não dominação, e não nos termos de dominação que herdamos” (Táíwò, 2021, p. 99).

Desvinculando o Sul global do Norte global

A interação e o intercâmbio entre os movimentos populares são essenciais, passando de um papel passivo no uso individual de bens e serviços para o exercício da dignidade coletiva que dá lugar à ascensão do Buen Vivir, da boa vida, da convivialidade. Uma visão coletiva em direção à soberania se estende a questões financeiras, energéticas e alimentares. A desvinculação (delinking em inglês), conforme proposta por Amin, é uma abordagem seletiva e não isolacionista que institui políticas voltadas para um maior controle sobre as prioridades locais e regionais. Isso enfatiza a autossuficiência econômica, salários justos e a distribuição equitativa de bens comuns, para reduzir a dependência de mercados e investimentos estrangeiros. 

Essa soberania inclui repensar as formas de conhecimento técnico-científico disponíveis para o capital, para avançar em direção a um intercâmbio entre o conhecimento popular, ancestral e científico. Isso também implica a recuperação das noções de transições justas, exigindo a energia como o bem comum, parte de uma transformação em direção a uma distribuição de responsabilidades equitativa e solidária. Além de uma transição que promove um direito individual emoldurado por novas alternativas de consumo e tecnologias eletrificadas, a transição é, acima de tudo, uma transformação dos sistemas ideológicos que justificam a hegemonia política, econômica e militar por meio de uma organização patriarcal, racista e colonial. Nas palavras de Rátiva-Gaona (2021, p. 175): é mudar definitivamente as condições de existência da vida em si.

O Pacto Ecossocial do Sul, formulado por vários movimentos e grupos ambientais em Abya Yala, defende o desenvolvimento de políticas voltadas para a redistribuição de terras, o acesso à água e uma profunda reforma das políticas agrárias, afastando-se da agricultura industrial de exportação. Na mesma linha, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil da América Latina e do Caribe unem forças para fortalecer a Cúpula dos Povos, na preparação para a COP30. Essa arena coletiva vem promovendo a solidariedade transnacional e soluções realmente justas diante do fascismo, dos fundamentalismos, das guerras, da financeirização da natureza, contra o modelo econômico atual e os impactos causados pelo domínio de corporações transnacionais.

Decrescimento e cancelamento da dívida

Para erradicar sistemas coloniais, como o capitalismo e o apartheid climático, é necessário combater processos duradouros de violência contra formas criativas e cuidadosas de viver na Terra. Para desmantelar esses sistemas empobrecedores e de escassez, precisamos de contraestratégias complexas, articuladas e de longo prazo e, o que é mais importante, devemos interseccionar as lutas descoloniais pela libertação, do Sul global ao Norte. 

Para uma rápida descarbonização, o decrescimento propõe a redução de formas destrutivas e desnecessárias de produção, concentrando a atividade econômica na garantia das necessidades e do bem-estar das comunidades. Os setores a serem reduzidos incluem combustíveis fósseis, publicidade, mercado de moda rápida (fast fashion em inglês), jatos e luxo, além de acabar com a obsolescência programada (Hickel, et al., 2022). Simultaneamente, o decrescimento também exige a garantia do acesso universal e da qualidade dos serviços públicos; a introdução de garantias de emprego e rendas universais de assistência que contribuam para uma transição justa; a redução do tempo de trabalho, não apenas para reduzir as emissões de carbono, mas para liberar tempo para se dedicar ao cuidado e às atividades que nutrem o bem-estar coletivo, como descanso e lazer.

Da mesma forma, a justiça em relação às “dívidas” exige o cancelamento de dívidas injustas no Sul global que perpetuam o legado da exploração colonial e obstruem a justiça climática. O aumento do endividamento significa maior pressão sobre os países do Sul para que explorem excessivamente os bens comuns naturais para o pagamento do serviço da dívida, facilitando que as corporações multinacionais controlem o uso da terra para obter lucros extrativistas. Isso acelera o apartheid climático ao aprofundar as perdas e os danos em países incapazes de responder a catástrofes sem incorrer em mais dívidas. 

2025 marcou o 72º aniversário do que é chamado de “Milagre Econômico Alemão”, possibilitado pelo Acordo de Londres, que cancelou grande parte das dívidas da Alemanha antes e depois da guerra. Esse precedente demonstra que o cancelamento da dívida é uma escolha política intencional. Ela pode permitir que os países do Sul liberem espaço fiscal para investir no bem-estar de seu território e de seus povos. Esse perdão da dívida foi assinado por muitos países colonizados, que agora enfrentam uma grave desigualdade econômica, inclusive efeito de empréstimos tomados de países como a própria Alemanha. O cancelamento da dívida, como ato de solidariedade à Alemanha no passado, deve ser estendido aos países empobrecidos e afetados atualmente. Desta vez, não se trata de uma questão de solidariedade, mas de justiça.

Conclusão

Diante do fracasso dos processos multilaterais em mudar o curso do apartheid climático, desvendamos os interesses imperialistas predominantes na UNFCCC e algumas dinâmicas injustas que eles impõem sobre os territórios afetados por seus megaeventos. Desde os legados históricos do colonialismo até a dinâmica contemporânea do capitalismo global, a exploração dos bens comuns, do trabalho e das terras no Sul global, continua a servir aos interesses do Norte e das elite em todo o mundo. Essas desigualdades arraigadas são agravadas por narrativas e práticas dentro das estruturas de governança da mudança do clima, como as COPs, que sustentam a colonialidade, como créditos de carbono como soluções tecnológicas, práticas extrativistas predatórias sob o pretexto de transições justas e mecanismos financeiros condicionados. Para alcançar a verdadeira justiça climática, as ações transformadoras devem incluir reparações materiais e simbólicas por danos históricos e atuais, como demarcação de terras para os povos tradicionais; a superação dos sistemas econômicos imperialistas para que nós nos beneficiemos da autodeterminação e da soberania genuínas; e o cancelamento da dívida. Somente por meio da descolonização do nosso conhecimento, da governança e da economia é que podemos ter a esperança de promover um futuro em que a justiça climática e social sejam priorizadas, transcendendo os legados da exploração e abrindo caminho para vidas dignas para todes nós em nossa diversidade e também para nossas espécies irmãs.


gina* (ela) é aluna do mestrado em decrescimento da Universitat Autònoma de Barcelona, Espanha. [email protected]

Isadora* (sem pronome) é estudante de doutorado em sociologia na Freie Universität Berlin, Alemanha. [email protected]


  1. O processo colonial nas Américas avançou por meio da imposição de uma subordinação racial de povos e territórios, o que aprimorou um capitalismo globalizado que perdura até hoje. Aníbal Quijano (2000) define a colonialidade como a sombra da modernidade europeia e como um processo eterno que permeia todos os aspectos da vida social. ↩︎
  2.  María Lugones (2008) postula que o sistema de classificação e subordinação de gênero também é um legado colonial do capitalismo eurocentrado. A colonialidade do gênero está inextricavelmente relacionada à colonialidade do poder.
    ↩︎
  3.  Context of the history of the World Bank creation https://www.worldbank.org/en/archive/history
    ↩︎

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