Dentre todos os concorrentes ao Oscar 2020 na categoria “documentário”, o filme “Democracia em Vertigem” se destaca por várias razões, mas eu gostaria de abordar aqui uma em especial. A tese principal do filme de Petra Costa sustenta que a democracia brasileira tem sofrido uma série de golpes, de modo que nós brasileiros não podemos mais dizer que vivemos em um país democrático. É um tipo de alegação que não deveria ser evitada, independentemente de nossa orientação política. Afinal de contas, democracia — mesmo com seus defeitos — é o que nos permite a possibilidade de fazer escolhas. Esquerdistas ou direitistas, nosso ponto em comum é — ou deveria ser — a democracia. Entretanto, a questão “o Brazil ainda é democrático?” exige mais do que uma resposta do tipo “sim ou não”, uma vez que, no que diz respeito ao mundo real, existe um degradê entre a democracia ideal e o regime autoritário. Há tons de cinza que não deveriam ser ignorados se pretendemos compreender o que o Brasil é de fato.
Por Alexey Dodsworth Magnavita de Carvalho, do Medium
Assim, com a finalidade de descobrir como a democracia está indo em cada país, desde 2006 uma instituição britânica conhecida pelo nome de The Economist Intelligence Unit tem desenvolvido uma investigação que mescla aspectos objetivos com percepções subjetivas a respeito de política. O resultado é o índice de democracia, que se concentra em mais de sessenta indicadores agrupados em cinco categorias, conforme seguem:
- “Pluralismo político e processo eleitoral”. Para resumir os principais aspectos abordados neste tópico, podemos perguntar: existem partidos diferentes oferecendo algo de realmente singular em seus programas? O processo eleitoral é claro e justo?
- “Liberdades civis”. Neste tópico, questiona-se se os cidadãos são ou não são livres para viverem suas vidas do jeito que quiserem. Liberdade de opinião, liberdade de religião e o direito de se envolver em associações civis são alguns dos principais pontos a serem considerados aqui.
- “Funcionamento do governo” é o tópico que pretende investigar a eficiência da máquina estatal no que concerne aos seus objetivos. Em resumo: o governo está agindo de modo competente?
- “Cultura política” é o tópico que tenta descobrir o nível de conhecimento político do povo. Os cidadãos lembram dos candidatos em que votaram? Os cidadãos conhecem os deveres que um congressista precisa respeitar? Nós conhecemos nossos próprios direitos e deveres?
- O tópico “participação política” avalia o envolvimento das pessoas em políticas locais.
Após avaliar cada um destes pontos, o Índice categoriza um país como um dentre quatro tipos de regimes, os quais são:
- Se o escore for superior a 8, então temos uma democracia plena. A Noruega é atualmente o país mais democrático do mundo, o que é demonstrado por seu escore geral: 9,87. O Uruguai é o único país sul-americano considerado plenamente democrático, uma vez que seu escore geral é 8,38.
- Democracias frágeis são países cujo escore geral vai de >6 até 8. Esta categoria reune nações que podem ser chamadas “democráticas”, apesar de seus vários problemas e fragilidades.
- Quando o escore geral for entre >4 e 6, diz-se que o país é híbrido, ou seja, a nação oscila entre procedimentos democráticos e ações autoritárias.
- Regimes autoritários não são de forma alguma democráticos, a exemplo da Coreia do Norte, o país mais autoritário de todos (escore geral = 1,08).
Caso queira checar a evolução da democracia das nações através dos anos, clique aqui.
No que diz respeito ao contexto brasileiro, o gráfico a seguir fala por si:
O atual escore geral brasileiro (representado no gráfico pela linha verde) é 6,86, o que categoriza esta nação como uma democracia frágil, perigosamente se movendo de modo a se tornar um regime híbrido. Para ser honesto, o Brasil é categorizado como “frágil” desde o mandato do presidente Lula, mas o escore geral era maior naquela época: 7,38 em 2006, seguido por uma leve queda durante o primeiro mandato da presidente Dilma. Uma leve recuperação ocorreu em 2014, mas não durou. Então finalmente a linha geral de democracia sofreu uma queda na época de Temer, e assim continua na era Bolsonaro. 6,86: o pior escore do Brasil em anos. Mas este escore é o valor médio de outros específicos. Em alguns, o Brasil vai bem. Em outros, não.
Por exemplo: levando em consideração a categoria “pluralismo e processo eleitoral” (a linha vermelha), o Brasil tem um esplêndido e estável escore geral: 9,54. O processo eleitoral brasileiro é melhor do que os procedimentos praticados em vários países de primeiro mundo. A categoria “liberdades civis” (a linha violeta) também é boa atualmente (escore: 8,24), mas já foi melhor alguns anos atrás: 9,42 durante o mandato de Lula. Infelizmente, a liberdade no Brasil sofreu uma queda constante de 2008 a 2010. Manteve-se inalterada durante quatro anos (de 2010 a 2014), então decresceu levemente uma vez mais em 2017, alcançando o nível onde se mantém até o presente momento.
Como mostra o gráfico, tanto a cultura política (linha lilás) quanto a participação política (linha azul) nunca foram uma virtude brasileira. Para piorar, estas categorias parecem ser auto-excludentes: quando a participação política brasileira aumenta, sua cultura política diminui, e vice-versa. Uma interpretação possível para este fenômeno é que quanto mais os cidadãos brasileiros se envolvem com política (manifestações, protestos etc.), pior é a ignorância expressada. Se esta hipótese estiver correta, ela revela nossa falta de educação política. Este é um problema que deveria ser seriamente levado em consideração na agenda educacional política futura, se pretendemos crescer como nação.
Por último, mas não menos importante, a linha amarela representa o funcionamento do governo. Quão competente é a máquina estatal? O Brasil quase atingiu o estado de democracia plena entre 2006 e 2008, durante o mandato de Lula: 7,86. Infelizmente, houve uma queda constante nos anos Dilma, quando o escore passou para 7,5. Na era Temer e agora na era Bolsonaro, a linha de competência simplesmente desabou e o escore atual é um vergonhoso 5,86. Conclusão: no que diz respeito à eficiência da máquina estatal, nós atingimos o nível de um regime híbrido. O escore de competência do governo brasileiro está mais baixo do que nunca.
De que forma o Brasil poderia melhorar sua situação política? Seus pontos mais fracos, como aqui demonstrado, são três: “cultura política”, “participação política” e “funcionamento do governo”. Cada um deles demanda programas de educação política mais eficientes que permitam às pessoas entender melhor o que é liberalismo e socialismo, assim como quais deveres e direitos nós temos como cidadãos brasileiros. Deste modo, melhores escolhas poderão ser feitas.
É inevitável concluir com uma pergunta: o que nos aguarda nos horizontes políticos brasileiros nos anos por vir? É realmente difícil antecipar as tendências, sobretudo por conta de nossos próprios vieses. Sendo de centro-esquerda, eu tendo a ser bem pessimista no que diz respeito ao futuro do Brasil. Por outro lado, um direitista que defenda o atual governo tende a apontar que 6,86 ainda está muito longe de uma horrível nota 6 (regime híbrido). Contudo, isso parece mais um pensamento desejoso. No que tange à democracia, é mais fácil destruí-la do que construir seu edifício. Algumas pessoas estão inteiramente dedicadas a defender o governo Bolsonaro, apesar de toda a incompetência orgulhosamente exibida na maioria das áreas. Eles sustentam que o atual governo brasileiro é excelente, apesar de todos os escores objetivos mostrados pela The Economist Intelligence Unit, que a propósito tem um viés bastante liberal. É difícil debater com fãs de Bolsonaro, e talvez não seja o momento justo para fazer isso, uma vez que eles alegam que o presidente teve apenas um ano para tomar atitudes. Temos que esperar um pouco mais. Eu espero estar errado, mas pessoalmente eu aposto em um decréscimo democrático constante nos anos por vir. Eu aposto que o próximo relatório nos dará mais dados (terríveis) para exibir, com um fundo musical de uma famosa canção dos Tears for Fears: “hora de engolir suas palavras / engolir seu orgulho / e abrir seus olhos”.