A distopia do cuidado no brasil opera no corpo das mulheres negras

O corpo negro é um corpo encruzilhada. Sua existência é plena realização dinâmica entre a decisão e o sacrifício.

Douglas Malûngu

 

Cuidado com conceito

A abordagem deste ensaio reconhece as múltiplas possibilidades de conceitos e definições que versam sobre cuidado. No entanto, aqui nos interessa lançar mão de algumas lentes com capacidades multidisciplinares para destacar lugares específicos de interação das mulheres negras e suas relações com a organização social do cuidado bem como a própria economia do cuidado.

Tal abordagem se impõe com urgência, já que se dá em contexto da pandemia do novo coronavírus no Brasil e se soma aos resultados da combinação entre divisão racial e divisão sexual do trabalho, que, conformada a partir do momento colonial e de duração perene, apresenta como naturalmente associados raça, trabalho e sexo.

Dou início a esse texto ao analisar, primeiramente, a categoria care e localizá-la no tempo e espaço. Afinal, dissecar os termos e conceitos é tarefa imperativa para aprimorar qualquer debate, sobretudo para pessoas negras em diáspora, uma vez que a linguagem é um sustentáculo importante da cultura e que, por meio dela, é possível acessar aspectos da cosmovisão do mundo de outrem.

Ao estabelecer o cuidado como objeto de estudo, as produções acadêmicas contemporâneas importaram o termo care ou care work do berço anglo-saxão. Em perspectiva teórica, aprofundou-se o conceito utilizando o termo nurturance, o qual foi cunhado por Englad e discorre sobre a dimensão afetiva e emocional do care.  Por outro lado, há estudos que entendem o cuidado como trabalho reprodutivo vinculado à econômica e percebido como sustentáculo para as relações interpessoais e familiares. Posto isso, não tenho a pretensão de fixar uma tradução exata: care pode significar cuidado, solicitude, preocupação com o outro ou ainda atenção às necessidades do outro.

Self-care: uma performance?

Há alguns anos tem sido possível testemunhar a categoria ser esvaziada de sentido coletivo ao ser relocada para o universo do self-care, apresentada com fortes apelos à individualização e à mercantilização de todos os aspectos da vida. Vale destacar que a propaganda do self-care, no Brasil, está intimamente vinculada à imagem das mulheres brancas, em geral magras, cis, heteronormartivas, adeptas aos movimentos fitness e/ou new sagrado feminino e que, em geral, costumam ser ostentadoras de alto padrão de consumo.

É o que nos apresenta o levantamento de dados feito pela série “Dados comentados self-care e beleza 2019”: segundo informações da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), o setor movimenta US$ 30 bilhões e é o quarto mercado consumidor no ranking mundial, representando 48,6% do mercado da América Latina

Como se pode perceber, os estudos sobre cuidado se originam e se orientam a partir da Europa, bem como seu sentido amplo é apropriado pelo self-care performado majoritariamente por mulheres brancas. Na contramão desse cenário, as operadoras do cuidado e dos serviços considerados essenciais são, em sua maioria, pessoas negras; mulheres com ascendência geográfica localizada no norte e nordeste do Brasil.

Narrativas reais e letais sobre o outro lado do cuidado

Considerando que estamos no Brasil e deste lugar atravessamos a maior crise sanitária da humanidade: como é possível versar sobre cuidado e não se ocupar em investigar e visibilizar as causas globais e locais que têm gerado cada vez mais sofrimento e exaustão nas pessoas, especificamente nas mulheres negras?

O pensamento social brasileiro se ocupou de “investigar” e reafirmar especialmente dois conceitos de feminilidade negra.  O primeiro conceito é a mulata, a criança de ouro da miscigenação, que está disponível para servir, divertir e para o prazer sexual. O segundo conceito de feminilidade negra é a Mãe Preta, ou a Mãe Negra — semelhante ao Mammy, figura nos Estados Unidos. Ela é uma mãe negra, redonda e carinhosa, que voluntariamente sacrifica seu trabalho e seu corpo em nome da nação.

Imagem retirada do site Diplomatique

Luiz Felipe de Alencastro escreveu um pequeno texto sobre essa foto, bem colocado no epílogo do livro História da vida privada no Brasil 2. Império: a corte e a modernidade nacional[1], no qual concluiu sobre a união dos dois personagens retratados: “Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. Na violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho de seu senhor. (…)”.

Para que possamos visualizar o caráter imperativo do cuidado para manutenção das relações humanas trago, a título de elucidação, alguns ofícios que se enquadram no conjunto de profissionais da categoria dos empregados domésticos. Dessa forma, conforme estabelecido pela Lei n. 5.859, de 1972, são trabalhadores dos serviços domésticos em geral:

Existe um perfil específico de trabalhadoras: essencialmente feminino, negro e pobre. Diferentemente dos homens, que são destinados à esfera produtiva, o papel de cuidado é delegado historicamente à mulher, cujo lugar é o domicílio e a esfera reprodutiva As trabalhadoras não têm acesso umas às outras para criar uma identidade de classe, já que o trabalho é realizado dentro dos domicílios, também gerando um falso senso de pertencimento à família.

A meu ver, ao lado da política de  ação afirmativa que foi fortalecida a partir da implementação da Lei n.12.711, de 2012, a Emenda Constitucional 72 homologada no ano de 2013, também chamada PEC das Domésticas, conquistas institucionais das lutas dos movimentos sociais negros representam a síntese da onda negra intransponível no século XXI no Brasil, causando profundo desconforto e medo branco.

Para compor e atualizar a reflexão, elaborei uma breve retrospectiva de algumas manchetes e trechos de jornais envolvendo operadoras do cuidado ao longo do primeiro semestre de 2020:

Janeiro, 2020. A crise econômica e a persistência de elevado contingente de desempregados recolocam o emprego doméstico como uma das únicas alternativas de inserção laboral, especialmente para mulheres negras.

Março, 2020. A primeira vítima no Rio de Janeiro que morreu de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, era empregada doméstica e trabalhava no Alto Leblon, bairro da zona sul da cidade que tem o metro quadrado mais valorizado do país. A mulher tinha 63 anos e percorria 120 km da casa dela até o trabalho.

Maio, 2020. A filha de empregada doméstica, Beatriz Launé, perdeu pai e mãe para a covid-19. A mãe não parou de trabalhar mesmo durante a pandemia.

Junho, 2020. Por 35 anos, mulher foi submetida a trabalho análogo à escravidão e patroa foi condenada. A sentença determinou o pagamento de cerca de R$ 170 mil para a vítima por indenização por danos morais.

Julho, 2020. A primeira-dama de Tamandaré estava responsável por Miguel Otávio, filho da ex-empregada doméstica dela, quando ele caiu do 9º andar de um prédio de luxo no Recife no dia 2 de junho. A mãe da criança, Mirtes Souza, havia saído do apartamento para passear com o cachorro da então patroa.

 

Essas poderiam ser as manchetes do fim do mundo, mas são naturalizadas no cotidiano colonial e neocolonial. Segundo a teórica Leila Gonzalez, “As mulheres negras, naturalmente, são cozinheiras, criadas, servas … ou prostitutas. Eles nada mais são do que as mulas que carregam a família de outras pessoas nas costas.”

Como podemos averiguar, embora a mídia tenha demonstrado, através dessas e de outros sem números de matérias, o labor e o risco a que as operadoras do cuidado e dos serviços essenciais expõem ao estarem no front da guerra contra o inimigo “invisível” sem precedentes — importante ressaltar que, na maioria das vezes, não estão por escolha, mas por falta de alternativas! — o racismo, face indisfarçável do mundo do trabalho e da cultura nacional, junto à análise do desenvolvimento dos campos discursivos das elites, confessaram-se absolutamente neocoloniais.

Cuidado: encruzilhada de interesses sobre as Mulheres Negras

“A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim”

(Letra de Mulher do fim do mundo

Intérprete: Elza Soares)

 

Diante das manchetes do último semestre ou dos anúncios dos últimos cinco séculos no Brasil, o fim do mundo já chegou para as pessoas negras. As experiências destacadas anteriormente estão imbricadas na herança colonial, pois apresentam particularidades postas através dos corpos de mulheres que se assemelham àquelas que outrora foram escravizadas e agora se encontram superexploradas, além de expostas a novos riscos sem mobilizar qualquer comoção nacional. Essas são experiências que transpassaram o tempo e o espaço.

Segundo a filósofa iorubá, Oyèronké Oyewumi, em “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano acerca dos discursos ocidentais de gênero” (1997)[2], o ocidente está condicionado ao corpo, e o sentido privilegiado por essa cosmologia é a visão. Dessa forma, o corpo é visto e classificado a partir do órgão sexual e da cor de pele. Aqui, a lógica é puramente biológica e, para a melhor compreensão da sua análise, a autora cunha o conceito de “somatocentralidade ocidental”[3]. Tal conceito, levado a cabo, nos permite perceber o rigor em relação a experiências de extremo sofrimento, requintes de crueldade e maus tratos descritos ao longo desse artigo.

A encruzilhada de sempre agora descortinada pela a pandemia do novo coronavírus, escancarou as crises históricas em torno do cuidado no país. Sim, crises no plural, já que após seis meses de medidas de contenção da proliferação do vírus constata-se que estamos todas e todos à deriva do mesmo mar de incertezas em relação ao “novo normal”, mas não estamos no mesmo barco, tampouco com os mesmos utensílios de segurança, já que a seletividade da necropolítica é categoricamente interseccional.

Por isso, acredito que o corpo da mulher negra é o espaço de consolidação do projeto confesso para a demonstração da supremacia total de um segmento humano que se autodefine como raça sobre outro segmento humano percebido como outra raça. Essa supremacia se expressa por meio de uma hegemonia irrestrita tanto no plano material (poder econômico e político) quanto no plano psicocultural (sentimento de superioridade).

Nesse sentido, a relação de posse e servidão perpetrada no âmbito privado a partir da operação do cuidado sempre descontou nas mulheres negras a via sine qua non para estruturar a complexa teia de relações sociais na sociedade brasileira até os dias de hoje. Desse modo, a soma do conservadorismo do nosso tempo, os valores da família patriarcal como instituição fundamental na formação da sociedade brasileira e a repactuação com as políticas neoliberais se reapresentam mais uma vez para atender os desejos de supressão da imagem/corpo da mulher negra, esta que tem sido orientada pela matricentricidade[4].

Cheik Anta Diop[5], em sua obra The cultural unity of Black Africa – the domains of patriarchy and of matriarchy in classical antiquity (1989), quando através da Teoria dos Dois Berços da Civilização, versa sobre o estabelecimento do matriarcado[6] como marca cultural da organização societal dos povos africanos continentais e diaspóricos, cujo o caráter seria uterocêntrico[7], orientado pela matricentricidade e por uma concepção solidária de vida em comunidade.  Motivos que configuram o símbolo máximo daquilo que precisava ser dissecado pelo empreendimento neocolonial de caráter patricêntrico[8],  falocrático[9] com propósitos mercadológicos e econômicos assumido.

Cuidado para além das fronteiras

Concluo pedindo colo às escritoras, afro-americanas, Audre Lorde e bell hooks, pois Lorde  nos apresenta a prática do autocuidado como um ato de autoindulgência, sugere que não percamos de vista o quanto o autocuidado é em si cuidado comunitário e vice versa; hooks nos convida para extrapolar o amor próprio e desenvolver o amor interior. Afinal, amor interior e autoindulgência são o solo fértil dos caminhos para o resgate da prática ancestral que nos deixou o infinito legado da filosofia Ubuntu, pois para o futuro ser verdadeiramente ancestral é preciso que nos libertemos dos equívocos sobre cuidado fruto da perspectiva colonial.

 

Caroline Amanda Borges é mestranda em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Educadora Menstrual; Terapeuta Sistêmica e Integrativa. Fundadora da @yonidaspretas, espaço virtual/presencial de acolhimento para mulheres e pessoas menstruantes. Inspirada pelo Afro Perspectivismo, como pesquisadora, tem atuado nas áreas das Humanidades, Comunicação e Direitos Humanos. Sua pesquisa central versa sobre Identidade, Família, Saúde da População Negra, com ênfase na saúde das mulheres negras. Foi convidada pelo Programa Interdisciplinar de Gênero e Sexualidade da Tulane University para apresentar os resultados da sua pesquisa e atuação como Idealizadora e Terapeuta na Comunidade Virtual/Presencial Yoni Das Pretas.

 

[1] ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil 2. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, pp. 439-440.

[2] Obra consultada através do artigo OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução: Juliana Araújo Lopes para uso didático de: OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Dakar, v. 1, p. 1-8, 2004.

[3] Consultar, por exemplo, NICHOLSON, Linda. “Feminism and Marx”. In.: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla. Feminism as Critique: On The Politics of Gender. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986,

[4] Forma de organização que tem como base fundamental a unidade matricêntrica, que se configura como a menor unidade de parentesco e como uma menor unidade autônoma de produção, cujos laços são definidos a partir da maternidade. Esta maternidade não se caracteriza apenas como a de caráter biológico, mas como parte da estrutura de uma organização social que tem como base a ideologia que todos aqueles que estão inseridos em uma unidade matricêntrica estão ligados por laços maternos.

[5] DIOP. Cheik Anta. The cultural unity of Black Africa – the domains of patriarchy and of matriarchy in classical antiquity. Westbourne, Karnak house, 1989.

[6] Para embasar sua teoria do matriarcado relacionada ao continente africano, Cheik Anta Diop trabalha com a concepção de uma unidade cultural africana, onde haveria uma transmissão entre as gerações de valores e crenças, considerando as diferenças que foram impostas ao longo do tempo pelas dominações árabe e europeia.

[7] Expressão utilizada na obra de Carlos Moore, para referir-se às sociedades onde a principal forma de organização ocorre pelos laços de maternidade. MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. 320 p

[8] Tipo de sociedade onde o homem é considerado o centro, a base da família.

[9] Sociedade onde se busca justificar a supremacia masculina.

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