A Dor da Cor, por Sueli Carneiro

Um dos aspectos mais surpreendentes de nossa sociedade é como a ausência de identidade racial ou confusão racial reinante é aceita como dado de nossa natureza. Quando muito, à guisa de explicação, atribui-se à larga miscigenação aqui ocorrida a incapacidade que demonstramos para nos autoclassificar racialmente. É como se a indefinição estivesse na essência de nosso ser. Seres transgênicos que escapariam de qualquer identidade conhecida, aos quais nenhum atributo racial e étnico utilizado alhures poderia abarcar por tamanha originalidade. É assim para o senso comum, é assim para a maioria dos intelectuais. Diferentemente de outros lugares, a nossa identidade se definiria pela impossibilidade de defini-la.

Por Sueli Carneiro

No entanto, a identidade étnica e racial é um fenômeno historicamente construído ou destruído. Nos EUA, onde, ao contrário do que se pensa a escravidão, também produziu uma significativa população miscigenada, definiu-se que 1/8 de sangue negro fazia do indivíduo um negro, a despeito da clareza de sua cor de pele. Aqui também definimos que 1/8 de sangue branco deveria ser um passaporte para a brancura.

Vem desde os tempos da escravidão a manipulação da identidade do negro de pele clara como paradigma de um estágio mais avançado de ideal estético humano que todo negro de pele escura deveria perseguir diferentes mecanismos de embranquecimento. Aqui, aprendemos a não saber o que somos e sobretudo o que devemos querer ser. Temos sido ensinados a usar a miscigenação ou a mestiçagem como uma carta de alforria do estigma da negritude: um tom de pele mais claro, cabelos mais lisos ou um par de olhos verdes herdados de um ancestral europeu são suficientes para fazer alguém descendente de negros, se sentir pardo ou branco, ou ser ‘‘promovido” socialmente a essas categorias. E o acordo tácito é todos fazermos de conta que acreditamos.

Dad Squarisi, com sua precisão cortante, disse em artigo de 13 de maio último que ‘‘a língua denuncia o falante”. No termo pardo ‘‘cabem os mulatos, os caboclos e todos os que não se consideram brancos, negros, amarelos ou indígenas”. Todos os que não se desejam negros, amarelos ou indígenas encontram uma zona cinzenta onde se abrigar, se esconder e se esquecer de uma origem renegada.

Para além do desejo de embranquecimento, outros fatores atuam como indutores da ambivalência na classificação racial.

Pertenço a uma família de sete filhos de mãe e pai negros, e alguns de nós foram classificados como pardos, sendo meu pai o responsável por todos os registros de nascimento, suficientemente preto para não haver dúvidas sobre a cor de seus filhos. Meu pai, que só sabia assinar o nome, nunca soube a cor que atribuíram a seus filhos. Dependia da vontade do escrivão porque, via de regra, isso nem lhe era perguntado.
É comum as negras bonitas serem ‘‘promovidas” a mulatas ou morenas por um galanteador. Essa ‘‘promoção, usada como uma forma de elogio, exige em contrapartida um sorriso envaidecido.

Entre as novidades do novo Censo, está o crescimento, em relação ao recenseamento de 1991, dos que se declaram pretos, indígenas e brancos, decrescendo a proporção dos autodeclarados pardos, que começam a desembarcar dessa zona cinzenta e optam decididamente pela identidade branca, negra ou indígena.

A identidade étnica e racial é fenômeno historicamente construído ou destruído. Como afirma Dad Squarisi, ‘‘o jeito pardo de responder revela o jeito pardo de ser”. Cresceu em 24% nesse Censo o número de pessoas que se autodeclararam pretas e que se supõe antes se autodeclaravam pardas. Essa novidade trazida pelo Censo pode talvez indicar que estejamos mudando, saindo das brumas e abdicando do subterfúgio da indefinição racial para enfrentar, no dizer de Hélio Santos, ‘‘a dor da cor” ou da raça. E, quem sabe, enfim curá-las.

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