A falta de memória brasileira não é um acidente, é um projeto

FONTEECOA, por Louise França*
O cantor e compositor Chico Science no Rio de Janeiro (30/03/1994) Imagem: Frederico Rozario/Folha Imagem

Uma pesquisa realizada por uma empresa farmacêutica em 2019 apontou que a perda da memória é um dos três maiores temores entre a população brasileira.

À medida que os anos avançam, as lembranças que trazemos afetivamente em nossas vidas ganham um lugar de grande importância e estima. Nós, seres humanos, temos esse costume de nutrir e registrar, no hipocampo ou em livros e outros escritos, coisas que marcaram nossa linha do tempo, sejam elas boas ou ruins. Discorrer sobre memória me leva a muitos lugares. Em especial, ao legado deixado pelo meu pai, Chico Science, e à história do Brasil e do mundo.

Penso que estamos passando por uma péssima fase, em que tudo e qualquer coisa pode ser feita da memória e do valor histórico de pessoas e situações. Há uma brecha, uma fenda aberta no submundo da falsa ignorância, que tem tentado engolir os miolos mais sujeitos à manipulação das palavras. A ausência de informação e conhecimento de fatos históricos reais tem se tornado uma arma poderosa nas mãos de “demônios que destroem o poder bravio da humanidade”.

Me peguei outro dia divagando sobre identidade nacional, e em quanto a sua construção está diretamente ligada à memória de uma nação. E no quanto é útil à nossa estrutura política a não educação e o não conhecimento.

Não é de interesse do Estado que a maioria dos brasileiros, que são pretos, pardos e pobres, se reconheçam em seus verdadeiros heróis ou identifiquem seus algozes. Em vez disso, invertem os papéis, levantam estátuas e colocam nomes em ruas e monumentos, enaltecendo personagens que estão longe de ser dignos de qualquer homenagem.

Não é de interesse político que o brasileiro conheça a sua história com a propriedade que lhe é de direito. Porque uma nação burra é algo facilmente manipulável, e consequentemente nunca terá força suficiente para cobrar o que lhes foi negado durante séculos.

Não à toa, sofremos com vários desmontes nos setores cultural e educacional nos últimos 6 anos. “E se o povo tem fome, que comam ossos”, diria Maria Antonieta. Completando, assim, o ciclo perfeito de preparação ao mal funcionamento intelectual do cidadão, negando-lhes inclusive, o acesso à nutrientes fundamentais para a conquista da total capacidade de pensar por si próprio.

É impossível que uma sociedade se desenvolva de forma saudável sem o acesso às suas raízes, sua essência e os verdadeiros registros históricos do lugar ao qual se considera pertencente.

Esse desdém e repulsa à verdade, uma das heranças sombrias deixadas pelos colonizadores, se perpetuam no descaso com a salvaguarda da memória dos que tentaram trazer alguma luz à essa “terra garrida”. Líderes quilombolas, abolicionistas, líderes indígenas, revoluções de emancipação, escritores, jornalistas, professores, artistas.

Tanta riqueza desperdiçada por um projeto de apagamento a troco do topo de uma pirâmide lamentavelmente sustentada pela inércia de uma nação que só tem tempo para pensar em colocar comida na mesa.

Desde a “abolição da escravidão” no Brasil, o Estado se comprometeu a negar qualquer direito básico à ex-escravizados e seus descendentes. Todas as nossas mazelas estão diretamente ligadas ao nosso passado escravocrata e usurpador. E isso inclui a carência na aproximação a registros sociais, culturais, patrimoniais e históricos pelo povo.

A base da nossa música, da dança, do folclore, da arte em geral é indígena e africana. E se a memória desse país indígena e africana é abafada, menos saberemos quem realmente somos e para onde devemos ir. Aprisionam mentes, para que então se crie o terreno ideal e propício ao encarceramento físico do indivíduo. No fim das contas, uma possível perda da memória cognitiva será o de menos, em um futuro que mal sabemos se existirá.

Volto ao presente com a triste sensação de mãos atadas, mas ainda sinto meus pés livres e posso caminhar. Um passo de cada vez, sempre em frente. Tenho 31 anos e estou aprendendo a cuidar do legado do meu pai, Chico Science.

Em 2022, o Movimento Mangue faz 30 anos, e com ele vieram muitas homenagens. Contudo, são 30 anos sem agenda nem data comemorativa em Recife ou no estado de Pernambuco. Foi por causa desse movimento que muitos pernambucanos passaram a se aproximar e conhecer valores e costumes que estavam quase esquecidos na poeira do tempo. Trazendo consigo o orgulho de ser, o sentimento de pertencimento e a consciência do poder de transformação da arte.

Quem sabe também venha daí a ideia da “diversão levada a sério” que meu pai tanto falava. Pernambuco deve ser, de longe, o estado com mais folguedos e brinquedos na cultura popular que qualquer outro. E perpetuar o que temos de melhor, é obrigação não só da sociedade civil, mas também, e principalmente, dos seus governantes.

Da manutenção do legado do meu pai e do Movimento Mangue, infelizmente pouco foi feito, comparado à dimensão das marcas positivas que deixaram não só para Pernambuco, mas para o Brasil como um todo.

Depois de alcançar a maturidade que creio necessária, estou disposta a fazer o possível para mudar esse cenário. Mais do que nunca, é preciso entregar à sociedade mensagens tão bonitas quanto importantes sobre diversidade cultural, responsabilidade político-social e preservação ambiental disseminadas pelo movimento.

Enquanto escrevo esse texto no bloco de notas do meu celular, desejo que esta ferramenta tecnológica não continue apenas sendo fonte de divertimento como tem sido para muitos. Existem legados gigantes guardados em nuvens cibernéticas, verdadeiros tesouros escondidos.

Vejo na natureza o maior exemplo: são pelas raízes que se sustentam e nutrem-se todas as árvores. Desejo ser árvore. A ignorância não é uma benção. A memória e a incessante busca por conhecimento, sim. E tudo que te faz ser quem você é.


*Louise França, manguegirl recifense, tem 31 anos, é cantora, compositora e atriz. Acredita na educação e na arte como ferramentas de transformação social, e no poder do voto como ponto de partida para a conquista e permanência de direitos e políticas públicas de igualdade racial, social e de gênero. Filha única do cantor e compositor Chico Science, atua na preservação da memória e legado do artista.

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