A favela sangra, conta seus mortos e ninguém está se importando

“Minha cara autoridade, já não sei o que fazer, com tanta violência eu sinto medo de viver, pois moro na favela e sou muito desrespeitado. A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado. Eu faço uma oração para uma santa protetora, mas sou interrompido a tiros de metralhadora”.

Por Mariana Assis, do Voz das Comunidades

Há cerca de 24 anos, Cidinho e Doca, crias da Cidade de Deus, lançaram o Rap da Felicidade. Na letra, um papo reto sobre as violações de direitos negados à população favelada: a diversão que “não podemos nem pensar”, esculachos, humilhações, tiros e mais tiros. Com mais de duas décadas de estréia, a música não só continua atual como também ainda estamos “perdendo o direito de viver”. Porém, o aparato repressivo é cada vez mais sofisticado e letal.

Imagem: Geledés

 

Estudo divulgado em agosto pela ONG Redes da Maré, instituição criada por moradores e estudiosos da região, revela que o primeiro semestre de 2019 registrou 21 operações policiais. Importante destacar que 8 delas contaram com o uso de helicópteros como plataforma de tiro – também conhecido como “caveirão aéreo”.

A edição especial do boletim Direito à Segurança Pública na Maré, motivada pelos índices extraordinários de violência, ressalta que de janeiro a junho deste ano 27 pessoas morreram. Friso que 2018 registrou 24 mortes em todo ano. No estudo também é ressaltado que 15 pessoas foram mortas durantes as 21 operações policiais e outras 12 mortes foram decorrentes dos 10 confrontos entre facções rivais na Maré.

Como tentativa de sensibilizar as autoridades responsáveis, 1.500 moradores das 16 favelas que compõem o complexo escreveram cartas denunciando o dia a dia truculento e opressor. As operações não se esgotam com tiros. Escolas e unidades de saúde estiveram fechadas por 10 dias no primeiro semestre.

Assim, o desenvolvimento psíquico, físico, social e econômico, como destaca o estudo, é alterado pela política de segurança pública que fez com que Cristovão Xavier de Brito, encontrasse seu neto baleado na calçada, ouvir de um policial que o jovem era traficante, tirar da própria dignidade a força para responder que não, significar sua dor imensa na blusa ensanguentada. O jovem estava a caminho do treino de futebol quando foi morto. Testemunhas afirmam que a bala veio do gatilho policial. Quem vai pôr fim à política homicida?

Da cabecinha às granadas: os seis sanguinários meses de governo Witzel

Ainda no período eleitoral, o então candidato ao governo do Rio, hoje o atual governador Wilson Witzel, discursava que criminosos portando fuzis seriam abatidos com tiros “na cabecinha”. Spiners, atiradores de elite, também seriam mobilizados para tornar o Rio uma vitrine de combate eficiente ao crime organizado. O plano de segurança pública foi diversas vezes questionado por especialistas e sociedade civil. Afinal, se guarda-chuvas são confundidos com armas, a concessão de licença para matar poderia acentuar ainda mais o trágico e lastimável quadro de crise do estado.

Dito e feito. Cada vez mais frequente o pranto favelado, em fevereiro, policiais foram acusados de executar pelo menos 15 jovens nos morros da Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres após serem torturados. Já em março, kauan Peixoto, adolescente de 12 anos, teria sido abordado por policiais, segundo testemunhas, na favela da Chatuba, em Mesquita. Mesmo tendo falado que era morador e não tinha ligação com ilegalidades, terminou executado. Em abril, os irrespiráveis 80 tiros no corpo do músico Evaldo Rosa, seguidos da decisão do Superior Tribunal Militar (STM) de soltar os militares responsáveis pelo disparo.

Além dessas mortes, há aquelas vividas pelo pânico cotidiano e intermitente. Sim, é possível morrer em vida também. O Rio prova isto todos os dias. Coloco no balaio também quem sustenta políticas públicas genocidas. Não é possível que se considere “viver plenamente” com essa realidade. Perdemos todos, inclusive em humanidade, o que é bastante questionável se ainda temos. Patrocinar discursos que se valem da violência para superar outras é decidir quem merece ou não morrer. Isso tem nome, chama-se barbárie. Estamos nos destruindo. Todos os dias.

Em maio, a presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia do Rio, a deputada estadual Renata Souza (Psol-RJ), denunciou Witzel à Organização das Nações Unidas, órgão máximo da diplomacia mundial, depois do governador ter postado um vídeo em que sobrevoava Angra dos Reis (RJ) de helicóptero durante uma operação policial. “Vamos botar fim à bandidagem”, comentou. Na prática, rajadas de tiros atingiram uma tenda religiosa– confundida com um suposto ponto de tráfico. Ninguém foi atingido.

“Não gosto de helicóptero porque ele atira para baixo e pessoas morrem”, escreveu uma criança não identificada do Complexo da Maré, na carta enviada a desembargadores do tribunal de Justiça do Rio. Segundo dados do monitoramento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança Pública, o uso de helicópteros como plataforma de tiro foi incluído na rotina de áreas faveladas. Como resultado, 34 operações no primeiro semestre espalharam terror, tensão, apavoramento e tudo o mais perpetrado por quem deveria resguardar de perigos.

Em outra carta, uma menina diz: “Todo mundo na minha escola chora. Meu irmão morreu por causa dos policiais. E eles bateram no meu primo. Então, não quero mais ver minha família morrendo quando entram. Avisem, tá? Obrigada por ler minha carta. Assinado, Letícia.” O ativista Raull Santiago divulgou fotos do que ocorre em creches e escolas sempre que tem operação nas favelas do Rio. Algumas perguntas a respeito: Quem vai ressarcir os dias de aulas perdidos? Sobre tratamento psicológico, quem arca, quem se responsabiliza?

Por fim, recentemente divulgado pelo coletivo Papo Reto, um vídeo gravado por moradores da Cidade de Deus mostra o momento em que um helicóptero sobrevoava rente a casas e, logo após, um clarão com forte barulho é ouvido, apontando para uma explosão. Na sequência, é possível ouvir mais barulhos similares ao da primeira bomba. Isso mesmo, bombas também fazem parte da proposta de segurança pública.

Como cantado por Cidinho e Doca: “Já não aguento mais essa onda de violência, só peço às autoridades um pouco mais de competência”. Porém, peço licença aos cantores para atualizar este verso e dizer que um pouco mais de competência não será suficiente. TEM QUE HAVER COMPETÊNCIA REAL E COMPROMETIDA COM AS VIDAS FAVELADAS. Como o Rap da Felicidade canta: “eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. Parem de nos matar.

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