‘Bacurau’ escancara o Brasil da brutalidade

No tiroteio sem fim, ninguém pode dizer que venceu

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Flávia Oliveira. (Foto: Marta Azevedo)

Foi a “Relatos do front” que “Bacurau” me levou logo nas cenas iniciais. O hiper-realismo do faroeste premiado de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles remeteu ao filme de Renato Martins sobre a epidemia de violência homicida no Brasil, a partir do Rio de Janeiro, também lançado este ano. A obra de ficção imprime com vigor o que o documentário esboça, num efeito Orloff macabro. [A quem desconhece a referência, o conceito saiu de uma campanha de vodca, assinada pelo publicitário Jacques Lewkowicz, que alertava para consequências futuras de ações do presente. No anúncio, o personagem tinha uma epifania da ressaca devastadora no dia seguinte, se escolhesse mal a bebida da véspera: “Eu sou você amanhã”, ameaçava. A expressão virou senha para crises, hecatombes político-econômicas, que saíam da Argentina e desaguavam no Brasil, em tempos de hiperinflação, endividamento e déficit fiscal. E voltou a nos rondar também nessa área.

“Bacurau” se apresenta como o reflexo no espelho de “Relatos do front” daqui a uns anos. Estou no rol de entrevistados do documentário e, sinal dos tempos, assisti em cenas do longa à metáfora que usei para reivindicar um pacto nacional pela redução dos homicídios. No Brasil, sabemos todos, a violação do direito à vida é recorrente; morrer, banal. Em 2017, o Atlas da Violência (Ipea/FBSP) contabilizou 179 assassinatos por dia, a maioria por armas de fogo, mais da metade das vítimas com idade entre 15 e 29 anos, quase todos de pele preta ou parda. “A gente é o quê? Uma funerária chamada Brasil?”, indaguei na gravação, em fins de 2017.

Por isso, a cena inicial de “Bacurau” — um caminhão carregado de caixões acidentado na estrada em que jaz um motociclista — me devolveu o amargo diagnóstico. Urnas funerárias são recorrentes no longa vencedor do prêmio do júri no Festival de Cannes 2019. Elas se avolumam na via pública e chegam à cidade fictícia do agreste pernambucano com a mesma frequência da comida e da água. No bangue-bangue brasileiro, na real ou no cinema, os espectadores estão previamente avisados de que vai morrer gente a rodo.

“Bacurau” é um filmaço de produção brasileira e francesa, que conquistou a crítica e vem arrebatando plateias Brasil afora, pela fagulha de resistência que acende. Saí do cinema num domingo e, em casa, acompanhei nas redes sociais diálogos de muita gente querida emocionada, nordestinos principalmente, com os vínculos comunitários e compromisso com o território que o longa propõe. Ou resgata.

De tão rígido o elo, são o ambiente, a cidade, a terra os protagonistas, não as pessoas. Figuras humanas não sobressaem; são cabeça, tronco e membros da persona “Bacurau”. Prevalece o senso de proteção ao ambiente e preservação do modo de vida. Até a natureza é hostil com os que vêm de fora. O filme é coletivo do princípio ao fim. O professor informa de cara que os muitos herdeiros de Carmelita — vivida por Lia de Itamaracá, mais filha da terra impossível — não se dispersaram. O pertencimento vive em quem emigrou, emerge dos retornados (vide a Teresa de Bárbara Colen), pulsa nos residentes, sobrevive nos desencarnados.

Quem nasce no lugarejo a 17 quilômetros de lugar nenhum não se rende, mesmo extirpado do mapa, desprezado pelo Sul Maravilha, aviltado por autoridades, ameaçado por estrangeiro. O pacto de autopreservação dos sertanejos de “Bacurau” encanta, comove. Mas entristece.

Há melancolia em enxergar na comunidade que se defende e sobrevive no precário, entre alimentos doados, verduras cultivadas, água escassa, remédios vencidos, o destino de um país. “Bacurau” escancara o Brasil da indiferença, da brutalidade, do oportunismo, da injustiça. E os brasileiros que, invisíveis e esquecidos pelo Estado, deliberadamente dele se afastam. No tiroteio sem fim, ninguém pode dizer que venceu.

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