A gastronomia religiosa é um bem cultural a ser preservado

“E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/ Que tu sabes qual é” (Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, in “Poema do Menino Jesus”). São versos de beleza ecumênica única na voz de Maria Bethânia em “O Doce Mistério da Vida”.

O Menino Jesus, nos Natais atuais, fugiu das casas, como fugiu do céu no poema de Pessoa. O aniversariante nem sequer é lembrado no frenesi consumista do espírito natalino e nas orgias gastronômicas, que remontam “ao antigo costume europeu de deixar as portas das casas abertas no dia de Natal para receber viajantes e peregrinos”.

Em “O espírito dos Natais passados: Natal ou Dia do Nascimento?”, escrevi: “Lá na Palestina, hoje Graça Aranha (MA), não dizíamos dia de Natal, mas Dia do Nascimento. Após ler ‘Um Cântico de Natal’ (1843), de Charles Dickens (1812-1870), entendi que a data era a mesma…

Em casa, nos empanturrávamos de café com leite e bolos; e mal deitávamos, rompendo a madrugada, ouvíamos o batuque do ‘reisado’ glorificando o Menino Jesus: ‘Ô de casa, ô de fora/Que hora tão excelente/É o glorioso santo Reis/Que vem do Oriente…’. Eu me pelava de medo dos ‘caretas’ dos ‘santos reis’, mas amava ‘cantigas de reis’. Nada de Missa do Galo (não havia padre, já disse!) e ceia de Natal. Nem presentes. Só no Ano Novo havia o ‘pagamento de alvíssaras’ – prenda que se dá a quem traz boas-novas. O almoço do Dia do Nascimento era leitoa e peru, cuja carcaça era degustada no dia seguinte, numa ‘quiabada’ – ossada de peru com quiabo, prato dos mais deliciosos. Mantenho a tradição: faço ‘quiabada’ do peru de Natal” (O TEMPO, 23.12.2008).

Peru caipira é uma memória olfativa tão forte e perene que consigo fazer de conta que é caipira o peru industrializado que vai pra nossas mesas desde 1974, quando surgiu o “Peru temperado Sadia”, que, desde a década de 1960, criava “peru de granja”. Pero, não há o que pague degustar um peru caipira nos moldes antigos: abatido na véspera, após o ritual de embebedá-lo com cachaça, não mais que 100 ml para um peru cevado, em média com 5 kg, é o suficiente para relaxar os músculos e amolecer a carne…

Voltei ao assunto em “Os rituais gastronômicos do Natal celebram o Menino Jesus?”, no qual digo que “O centro da comemoração era o Menino Jesus, daí a imperiosa presença dos presépios e da ‘tiração de reis’ – apresentação de reisados, iniciados na véspera do Dia do Nascimento, indo até ao Dia de Reis, 6 de janeiro. Os reisados são autos natalinos de uma beleza indescritível… Não havia a cultura de Papai Noel nem de presentes. Isso era lá no sertaozão bravo, porque na capital, São Luís do Maranhão, o Natal já era infestado de Papai Noel, ceia de Natal e quetais, embora até hoje os presépios sejam venerados.

Depois que tive a minha própria casa, a cultura gastronômica natalina europeia passou a existir, pois Natal, para o meu marido, era cultura europeia. Honestamente, continuo gostando muito mais do almoço de Natal do que da ceia natalina. Resolvemos o possível problema criando a nossa prole nas duas tradições gastronômicas” (O TEMPO, 22.12.2009).

Não tenho religião, mas sou “religiosíssima” nas comidas de “dias santos”, tradição cultural herdada de minha família, a exemplo da Semana Santa e do Natal, cujos rituais culinários são de dar água na boca e bens culturais a preservar. No que depender de mim, minha descendência não os esquecerá, em deferência aos nossos antepassados.

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Fonte: O Tempo

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