A história da estátua censurada em São Paulo por mostrar um beijo inter-racial

Ela tem uma história de vida inusitada para uma estátua.

Por Leandro Machado, do BBC

Mas é difícil saber o motivo olhando para ela agora, em uma tarde ensolarada de quinta-feira no centro de São Paulo. Não existe qualquer placa explicativa sobre aquele beijo. Ou o que ela enfrentou para estar ali: a censura, o discurso de um político indignado, abaixo-assinado de moradores, fúria e preconceito de parte da imprensa paulistana.

A estátua O Beijo Eterno foi inspirada em um poema de Olavo Bilac. (Foto: Imagem retirada do site BBC)

Enquanto os alunos da tradicional Faculdade de Direito da USP, conhecida como Largo São Francisco, entram no prédio para assistir às aulas, o monumento O Beijo Eterno na entrada parece apenas o que é de fato: uma estátua de bronze com um homem e uma mulher, nus, beijando-se.

Considerada “imoral” nos anos 1960, ela chegou a ser retirada do espaço público algumas vezes, porque representava um “acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano”.

Uma história parecida ocorreu décadas depois, no início de setembro deste ano, quando a representação artística de outro beijo, dessa vez, entre dois personagens gays de uma história em quadrinhos, sofreu uma tentativa de censura por parte do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PSC).

O político e ex-pastor evangélico considerou a cena “inadequada” para menores de idade e tentou retirar a obra da Bienal do Livro, embora a lei não diga que um beijo, hétero ou homossexual, seja inapropriado para crianças e adolescente.

Porém, a censura ao livro foi proibida por uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Tofolli — que, coincidentemente, formou-se em Direito no Largo São Francisco, onde atualmente se encontra O Beijo Eterno.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PSC), disse que o beijo entre dois personagens gays em uma HQ era impróprio para menores de idade. (Imagem: Reprodução/BBC)

A história de um beijo

A estátua foi criada em 1922 como parte de um grande monumento em homenagem a Olavo Bilac (1865–1918), poeta parnasiano bastante popular no início do século 20.

Antes de morrer, o escritor havia se tornado um ídolo dos estudantes do Largo São Francisco. Embora nunca tenha se matriculado no curso de Direito, chegou a frequentar algumas aulas na faculdade por dois ou três anos.

Além da literatura, ele ganhou fama entre universitários por um motivo político, segundo Heloisa Barbuy, professora de museologia da USP e autora do livro As Estátuas da Faculdade de Direito (Ateliê Editorial).

“Na faculdade, ele ficou famoso por ser um dos principais líderes do movimento nacionalista, que, na época da Primeira Guerra Mundial, teve bastante importância no país”, explica Barbuy. “Em 1915, Bilac chegou a fazer um discurso na faculdade que ficou muito famoso, emocionando as pessoas. Décadas depois, os estudantes ainda citavam de cor parte desse texto.”

Quando Bilac morreu, em 1918, um grupo de estudantes quis homenagear o poeta com um monumento público. Para isso, fizeram um financiamento coletivo para bancar o projeto, um conjunto de oito figuras: entre elas, Pátria e Família e O Caçador de Esmeraldas. Já O Beijo Eterno é uma representação de um poema homônimo de Bilac.

O trabalho foi dado ao escultor sueco William Zadig. Na última hora, entretanto, faltou dinheiro para completar as estátuas, mas os alunos da Faculdade de Direito foram socorridos pelo então presidente da Liga Nacionalista, Frederico Vergueiro Steidel. A entidade “passou o chapéu” no comércio paulistano e em redações de jornais para arrecadar o valor que faltava.

O enorme monumento foi inaugurado na confluência das avenidas Paulista, Consolação e Angélica em 7 de setembro de 1922, para coincidir com o centenário da Independência do Brasil.

“Inicialmente, a obra foi muito elogiada nos jornais. Mas, depois de alguns meses, começaram as críticas”, diz Heloisa Barbuy. “Uma das publicações da época, A Gazeta, criou uma campanha contra o monumento e pediu inclusive sua demolição, dizendo que ele não tinha qualidades estéticas.”

Havia também reclamações pelo fato de o escultor ser estrangeiro, embora Zadig já morasse no Brasil havia anos e fosse casado com uma brasileira. “Era um momento em que o nacionalismo estava em todas as discussões, inclusive na arte. Havia um sentimento de valorização de aspectos nacionais. A Semana de Arte Moderna de 1922 tinha acontecido havia poucos meses, reafirmando essa característica, mesmo que na época ela não tenha tido a importância que se dá hoje”, diz Barbuy.

Por outro lado, o jornal A Gazeta afirmou que O Beijo Eterno não tinha qualquer relação com o famoso poema de Bilac, porque a estátua representava um encontro amoroso entre uma índia e um português, cena que não é citada em nenhum dos 59 versos da poesia.

Essa foi a primeira vez que alguém interpretou a personagem feminina do monumento como uma índia — talvez pelo formato de seu cabelo e por uma faixa ao redor da cabeça. O homem tinha característica caucasiana e, por isso, talvez tenha ganhado a alcunha de europeu.

“Não se tem informação de que o artista queria retratar um beijo inter-racial entre uma índia e um branco, mas foi assim que a obra ficou conhecida. E isso foi tratado de maneira preconceituosa na imprensa. A Gazeta chamou a personagem de ‘bugre’, uma palavra pejorativa para se referir aos indígenas”, diz Barbuy.

Não há registros de que, na década de 1920, alguém tenha se escandalizado com o fato de a dupla estar nua. Reclamações contra o “conteúdo sexual” só viriam décadas depois.

A historiadora Heloisa Barbuy acredita que a campanha contra o monumento a Bilac, nessa fase, tinha mais a ver com motivações políticas, que são muito difíceis de compreender agora, quase um século depois. “Era um momento conturbado, com a convergência de muitos grupos políticos. Talvez, essa campanha tenha ocorrido para atacar Frederico Vergueiro Steidel, presidente da Liga Nacionalista, que participou ativamente da confecção da obra”.

O monumento foi finalmente desmontado em 1935, quando a prefeitura mudou o trânsito na região. Algumas das peças foram levadas para outros pontos da cidade.

Por sua vez, O Beijo Eterno foi parar em um depósito da prefeitura, onde permaneceu por muitos anos.

Até que apareceu Jânio Quadros.

Os bons costumes dos moradores do Cambuci

Provavelmente, quando assumiu o cargo de prefeito de São Paulo em 1953, Jânio Quadros conhecia a história de O Beijo Eterno, pois ele também havia se formado em Direito no Largo São Francisco, onde a estátua era célebre.

“Em 1956, ao ver a obra parada em um depósito, Jânio decidiu levá-la para o Cambuci, bairro onde ele morava”, conta Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autora do livro Memória da amnésia: Políticas de esquecimento (Edições Sesc), lançado na semana passada.

Segundo uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo na época, a prefeitura tinha instalado, anos antes, a imagem na entrada do colégio estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros. Mas ela ficou na escola por um brevíssimo período, porque os pais dos estudantes se mobilizaram para retirá-la. Eles diziam que a figura era “imoral”.

Já no Cambuci, boa parte dos moradores também não ficou nada contente com a presença da escultura. Foi organizado um longo abaixo-assinado para que a obra fosse removida imediatamente do bairro, alegando que ela atentava contra os bons costumes.

O então prefeito, que depois viraria presidente da República, não resistiu à pressão e retirou o monumento das ruas do Cambuci. Censurado, O Beijo Eterno voltou ao depósito da prefeitura, onde não podia ser visto pelo grande público.

Mas, de fato, a estátua mostra muita coisa?

A resposta depende da época em que você vive.

A estátua foi censurada por seu ‘conteúdo’ impróprio aos bons costumes do paulistano. (Foto: Imagem retirada do site BBC)

O personagem masculino está ligeiramente curvado sobre a moça, com uma das mãos nas costas dela e outra mais abaixo, na cintura. Já a mulher se estica para alcançar a boca do amante, colocando o braço direito ao redor da cabeça dele, que, aliás, parece desproporcionalmente grande em relação ao resto do corpo. Ambos estão nus, com seios, nádegas e pênis (não ereto) à mostra. A cena congelada em bronze poderia representar o momento anterior ao início de uma relação sexual.

Hoje em dia, nossa exposição a conteúdos eróticos e pornográficos é muito mais frequente, então a estátua não parece “nada demais”, tanto que ela passa quase despercebida no calçadão que se estende à entrada da Faculdade de Direito da USP. Ninguém para na sua frente e diz, escandalizado: “que absurdo, temos aqui uma cena de sexo”.

Mas nos anos 1950, década anterior à chamada revolução sexual, a pornografia ou cenas eróticas não eram tão acessíveis, menos ainda no espaço público. Então, para um morador do Cambuci daquela época, talvez O Beijo Eterno fosse “um pouco demais”. Não que a história da arte não tenha há séculos milhares de quadros e monumentos com personagens nus, diga-se, mas é possível que eles chocassem menos estando dentro de um museu.

Para Beiguelman, não apenas a cena sexual causou rebuliço, mas o contexto dos personagens. “Na minha concepção, além dos corpos nus, tinha essa situação de ser um homem branco com uma indígena. Isso era um problema para os padrões morais da época, as pessoas consideravam um relacionamento como esse ofensivo e censurável. A cidade era mais preconceituosa, e as questões de gênero e raça eram mais veladas”, diz.

A professora cita outras estátuas que passaram por processo semelhante, de perseguição e censura, em São Paulo, mas nenhuma foi “tão polêmica” quanto O Beijo Eterno.

“Bem ao lado dela, no Largo Francisco, há o O Menino e o Catavento, que também foi removido uma vez porque ele está nu. Há também O Fauno, do (artista modernista) Victor Brecheret, que foi retirado de uma praça no Centro depois que algumas pessoas começaram a fazer um culto noturno em frente à obra”, explica.

“O Monumento a Garcia Lorca virou alvo do Comando de Caça aos Comunistas, durante a ditadura militar, porque ele homenageava o poeta espanhol, que era comunista e homossexual”.

O incrível retorno de O Beijo Eterno

Dez anos depois da censura no Cambuci, em 1966, o então prefeito José Vicente Faria Lima decidiu instalar O Beijo Eterno na entrada do túnel da avenida 9 de Julho, no centro da cidade. Mas houve nova resistência.

“Dizendo-se portador de memorial assinado por senhoras residentes da 9 de Julho, o sr. Antonio Sampaio, membro da Arena (partido da ditadura), solicitou a retirada da estátua. A solicitação foi feita por meio de um discurso na Câmara”, escreveu o O Estado de S.Paulo em 8 de outubro de 1966. “Segundo o vereador, a estátua constitui um ‘verdadeiro acinte ao decoro e aos bons costumes do paulistano'”

De novo, O Beijo Eterno voltou a ser escondido no depósito. Mas, dessa vez, uma reviravolta selaria o destino da escultura: os estudantes da Faculdade de Direito decidiram agir.

Os jovens fretaram um caminhão, invadiram o depósito da prefeitura e furtaram a figura de bronze de 400 quilos. Depois, ela foi instalada em frente ao campus. Os alunos ainda fizeram uma ameaça: se a estátua fosse retirada do Largo São Francisco, iriam cobrir com panos todas as outras representações de pessoas nuas que houvesse na cidade.

“Os estudantes se sentiram no direito de pegar a estátua, porque ela é um patrimônio da faculdade. Foi Largo São Francisco que financiou sua construção”, diz José Carlos Madia de Souza, presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP.

Último verso

Depois do furto, O Beijo Eterno não saiu mais do calçadão em frente à faculdade: passou incólume até pela ditadura militar, que tinha uma máquina ativa de censura à liberdade de expressão e artística.

Hoje, ela é só mais uma estátua no centro de São Paulo, e sua história ficou nos livros e nos arquivos de jornais. “Os estudantes passam por ela e nem sabem o que aconteceu. Mas isso é normal, o tempo passa e as pessoas se esquecem”, diz Madia de Souza.

Ao menos que haja outra reviravolta ou uma nova onda de censura, os dois amantes ficarão expostos por ali, paralisados em um beijo moldado em bronze para ser eterno, como queria o último verso do poema de Olavo Bilac:

“Quero um beijo sem fim

Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!

Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!

Beija-me assim!

O ouvido fecha ao rumor

Do mundo, e beija-me, querida!

Vive só para mim, só para minha vida,

Só para o meu amor!”

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