A inadequação linguística de Carolina Maria de Jesus

FONTEMedium, por Gabriel Nascimento
Carolina Maria de Jesus em 27 de maio de 1952, fotografada por Norberto Esteves (Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Última Hora)

Uma professora famosa de Literaturas de uma universidade famosa brasileira resolve criticar a nova edição da escritora Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras, uma edição, segundo me dizem, com participação de Conceição Evaristo e pela própria filha de Carolina.

Os motivos dessa professora estão ligados a essa edição manter os “erros” gramaticais, a inadequação de Carolina. Segundo ela, é óbvio, isso é um absurdo, pois não fazem isso com autores brancos. Pior: ela invoca Machado de Assis, numa confusão entre política ortográfica e visão de norma (normativa, descritiva) para dizer que ninguém mantém a grafia original de fósforo.

O post dela é um clássico de como a branquitude vê língua. Há décadas a visão de democratização da norma culta é uma religião entre nós. Para isso, se substituiu aos poucos o que se chamava de “erro” para “adequação”, como se lé e cré não fossem a mesma coisa.

O mais sensacional dessa história não é nem que uma colega esteja se passando por ingênua, ao reivindicar um papel de esquerda e reproduzir a ideia de “adequação”, ignorando que sua língua editorial é a assimilação dos valores linguísticos brancos ocidentais, eles que há muito são usados como justificativa para excluir autores negros dos processos editoriais.

Mais sensacional é que em momento algum ela se questionou do efeito político de questionamento da própria norma por meio dessa decisão. Ela simplesmente traz pra discussão a justificativa de que, fora da norma padrão, a obra simplesmente será ignorada e não vai ser lida.

Nessa direção, ela coloca Carolina nas margens apenas por sua língua. Para ela, o que justifica a posição de subalternidade dos escritores negros é porque eles não foram incorporados à cultura da escrita e do português padrão. Nada se difere de Florestan Fernandes, e sua busca pela integração, ou do próprio movimento br.an.ku crítico brasileiro que, em sua história, nunca retornou às lutas antiescravas dos próprios africanos e repetem até hoje um antirracismo fajuto e superficial, uma agenda da boca pra fora, a partir de suas posições privilegiadas de branquitude.

As pessoas negras não são publicadas, ou não são vistas, ou não são lidas, ou são execradas, não é por causa do seu português não editorial. É por que, quanta surpresa, são negras, e pertencem, como referente no mundo, a uma ideia de passado, a serem superadas na história, a serem substituídas para sempre. Nada adiantará norma sem corpo, ou pretuguês sem preto, ou amefricanidade sem teoria preta produzida por pessoas pretas.

O caso enfático vem do “a gente combinamos de não morrer” de Conceição Evaristo. Diferente de Carolina, que não frequentou os bancos da universidade como doutora, não puderam culpar a inadequação de Conceição, e passaram simplesmente a reproduzir a frase como “nós combinamos de não morrer”.

Bem fazia Alberto Guerreiro Ramos, cansado dessa patifaria, ao defender o “negro vida”, ou a vida real do negro (como faz minha querida amiga Monifa Francesco).

O que faz do post dessa senhora perigoso é que ela consegue reproduzir a mesma visão racialista e culturalista do negro brasileiro dos últimos 200 anos. O negro, visto de fora, é um problema. Mas visto da branquitude, e da visão de adequação (ou o que Johnatan Rosa e Nelson Flores chamaram de “falante ouvinte branco ideal”, que norteia a nossa visão de adequação e norma) é ainda pior.

A despeito de toda retórica, as normas também estão em disputa pelo próprio povo, pelas pessoas, pelos usos. A visão linguística dos africanos no Brasil durante muito tempo se internalizou no tal português brasileiro e é um espaço de disputa dentro dele. Não só porque precisamos chamar essas práticas de pretuguês, mas porque precisamos repensar como uma pessoa supostamente “sem norma” fala e continua a falar, e mesmo assim produz conteúdo e conhecimento, apesar da “norma”. Isso nos faz enxergar que não há aquela norma, senão como abstração da nossa visão racista de norma, que conclui por uma internalização capenga de normas, como se somente os sujeitos estivessem submetidos a elas e não elas também aos sujeitos. É essa a decisão política, capitaneada e louvada no meio acadêmico brasileiro quando lideradas por intelectuais negros.

Engraçado é que ninguém se manifestou contra a edição desonesta de Carolina feita por seus editores brancos até aqui. Bastou estar na “norma” (da branquitude) e Carolina veio pra sala do exotismo e da piedade da crítica literária brasileira, que é normativista e ultrapassada.

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