Autora de livros infantis sobre racismo e direitos humanos, Kiusam de Oliveira é também professora e se inspirou em sua própria experiência com o preconceito para escrever histórias
Por Marília Marasciulo, da Revista Galileu
A autora de livros infantis Kiusam de Oliveira, 54 anos, abraçou uma causa nada simples: tratar de temas espinhosos como racismo e direitos humanos de uma forma que crianças compreendam, se identifiquem e, o mais importante, se encantem. Para isso, buscou na sua própria experiência e vivência como estudante e professora negra a inspiração para histórias que hoje são tidas como referência na educação infantil.
Nascida em Santo André, na Grande São Paulo, Oliveira é filha de uma tricoteira que sempre priorizou a educação. “Minha mãe, mesmo muito pobre, primava pelos estudos e dizia: ‘nós vamos dividir um ovo em quatro partes, mas você vai ter uma educação de qualidade’”, lembra a autora. Aos 14 anos, começou a cursar Magistério de 2º Grau, seguiu na Pedagogia, obteve especialização em deficiência intelectual, mestrado em Psicologia Escolar e doutorado em Educação.
Mas, além da carreira no magistério, e também por influência da mãe, Oliveira sempre gostou de escrever. “Ela fazia capangas [tipo de bolsa] e colocava dentro dos bolsos cadernetinhas com lápis pequenos e me dizia para escrever”, lembra a autora. Foi em algumas destas centenas de cadernetas — ela conta mais de 150 — que a autora encontrou as temáticas para suas histórias.
Em 2009, lançou seu primeiro livro: Omo-Oba: Histórias de Princesas, no qual contos e mitos de orixás femininos ganharam forma de princesas. Em 2013, publicou seu maior sucesso, O Mundo no Black Power de Tayó, em que questiona estereótipos racistas a partir do empoderamento de uma menina negra de 6 anos de idade. No ano seguinte, com O Mar que Banha a Ilha de Goré, a autora se aprofundou ainda mais nos temas, usando a viagem da protagonista, uma menina de 9 anos, para o Senegal, para abordar a história do tráfico de seres humanos escravizados durante a colonização europeia das Américas.
Agora, ela se prepara para lançar dois novos títulos em abril: O Mundo de Tayó em Quadrinhos e O mundo no Black Power de Akin, uma esperada versão de Tayó para meninos. “Entendo que essa literatura que eu faço, que chamo de literatura infantil negro-brasileira do encantamento, ajuda a criança negra a se reencontrar, a trazer esse encantamento ou reencantamento para seu corpo”, diz a autora. A seguir, ela fala mais sobre infância, racismo e educação:
Você sofreu os preconceitos que combate hoje durante a sua infância em Santo André?
Conheci as marcas do racismo em uma escola de freiras perto de casa, para onde fui quando estava próxima de completar 6 anos. Vou contar uma situação que foi muito marcante, para que as pessoas consigam compreender as marcas da violência na vida da gente. Eu não conseguia segurar meu xixi, e tinha uma necessidade ir ao banheiro imediatamente, com um atestado para isso. Um dia minha professora faltou e veio a diretora, ela era muito temida por nós. Ela dizia: “eu sou uma alemã de 2 metros de altura e vocês vão ter que me engolir.” Dava pavor.
Eu senti vontade de fazer xixi, levantei e pedi autorização para ir ao banheiro. Ela não autorizou, pediu para eu sentar novamente, e quando eu abri a perna para me movimentar e retornar à minha carteira, fiz xixi ali. Ela se levantou, agarrou a minha orelha, foi me arrastando, me levou ao banheiro, tirou minha roupa, abriu o chuveiro e me jogou embaixo da água fria. Comecei a chorar muito, gritava, porque tinha esperança da minha mãe me ouvir da nossa casa. Nisso ela pegou um tufo de papel higiênico e colocou dentro da minha boca. Aquilo rasgou minha gengiva, eu me lembro da água caindo com sangue. Aí ela saiu. Quando voltou, estava com todos os alunos da minha sala. As crianças começaram a rir e a gritar: “a macaca tá pelada, a macaca tá pelada!”.
Aí ela disse assim: “olhem bem para o que vocês estão vendo, é assim que todo preto deve ser tratado”. Isso pra mim foi muito marcante, porque minha mãe falava em casa sobre o racismo, e eu não entendia, eu era uma criança. Fui entender nesse dia.
Como essas vivências influenciaram sua escolha pela carreira no magistério?
Quando fui fazer uma habilitação na USP, na década de 1990, na área de deficiência intelectual, conheci grupos de estudos de formação de professores. E nesses grupos estudavam memórias que a gente tinha enquanto estudantes de pedagogia, e que a gente carregava na prática do magistério. Foi nele que consegui me lembrar de uma agressão racista de um professor de geografia. Hoje posso dizer que minha escolha de atuar como professora vem dessa potência de entender o quanto um professor e uma professora são capazes de determinar a vida de um estudante.
E depois de tantos anos, acha que a situação nas escolas melhorou?
A educação ganhou um novo corpo a partir da Lei Federal 10639, de 2003, que obriga o ensino da história da África nas escolas brasileiras. Foi tão importante que conseguiu alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela obrigou professores e profissionais da educação a olharem para a diversidade de uma outra forma, que valoriza, compreende e respeita. E pensar em projetos e ações a partir das falas e dos comportamentos das crianças, jovens e adultos em sala de aula.
Falo desta lei sempre com muita cerimônia, muito respeito, porque pra mim é uma lei revolucionária que alterou o padrão da educação brasileira desde a sua criação. Ela é tão revolucionária que não foca somente no espaço da sala de aula, ela obriga os profissionais da educação a se verem e se olharem. Nós precisamos nos olhar e refletir sobre a educação que tivemos: o que a vó falava sobre negros dentro de casa, a mãe, o pai, os filhos… que cenas racistas você viu quando foi para o mercado, como se portou, o que sentiu. É preciso olhar para isso.
Por que educar os professores faz parte da luta contra o racismo?
Trabalhei com formação de professores nos últimos 20 anos no Brasil inteiro, e as professoras adoram contar esse mesmo caso, o do aluno que reclama: “professora, fulana está me chamando de negrinha.” E eu pergunto: “e aí, qual foi a sua resposta?”. Elas costumam responder: “ué, eu falei, você não é negrinha mesmo?” E ainda complementam: “por que o próprio negro é racista?” Esse é um estereótipo para cima do negro.
Um estereótipo recorrente e reforçado na sala de aula.
Primeiro, vou dizer o seguinte: nao tem como negro ser racista, assim como não tem homem ser feminista, mulher machista. O que tem de possibilidade é no máximo reproduzirmos a forma com a qual somos tratados. Então, se eu recebo práticas racistas, e sou chamada de negrinha o tempo todo e passo a minha infância passando por situações violentas e de exclusão, uma hora eu vou querer não ser mais quem eu sou, vou me negar. Em algum momento dessa negação, vou preferir achar que tenho forças para alterar minha forma de ser e me tornar parecida com quem eu quero ser, que é uma pessoa branca. Vou alisar meu cabelo, vou usar certo tipo de roupa, tentar ser discreta nas cores (que é outro estereótipo). Mas isso não quer dizer que a pessoa está sendo racista, porque o conceito de racismo está atrelado a poder, poder real e concreto, coisa que o negro não tem.
De onde veio a inspiração para criar suas histórias?
Escrevo desde criança. Minha mãe era crocheteira e tricoteira, ela fazia capangas, e colocava dentro dos bolsos cadernetinhas com lápis pequenos e me dizia para escrever. Antes eu fazia garatujas, bolinhas, linhas. Com o tempo, aprendi a ler e a escrever, e aí comecei a trabalhar as letras dentro do modelo formal de escrita. Assim registrei as coisas. O incrível é que minha mãe guardou todas as minhas cadernetinhas. Tenho mais de 150 com histórias escritas, é um material que tem uma potência gigantesca com a forma que eu pensava, e há textos focados na questão racial desde a infância. Infelizmente, é uma questão que permanece, o corpo da criança negra é marcado pelo racismo. Todas as histórias que escrevo são reais. São experiências vistas, vividas, ouvidas por mim enquanto professora e como negra.
Como as crianças reagem aos seus livros?
Tem um vídeo que mostra um grupo de professoras trabalhando com o primeiro livro que eu lancei, Omo-Oba: Histórias de Princesas, e é notório perceber como as crianças receberam o livro naquela época. Foi muito surpreendente, porque elas olhavam e diziam que aquelas princesas eram falsas, de mentira, mas o mais comum era ouvir delas o que eram feias porque são pretas. Havia uma rejeição por parte de crianças negras e não negras. O livro foi lançado em 2009, e de lá para cá, especialmente nos últimos cinco anos, tenho percebido pelas cartas que recebo dos leitores que as crianças escolhem uma princesa e dizem “eu me pareço com tal”. É isso, porque nessa história eu trabalhei arquétipos femininos, então as crianças vão se identificando com aquilo para além da aparência.
Por que é tão importante trabalhar a identidade na literatura infantil?
Quando conto a história da Tayó, do meu livro O Mundo no Black Power de Tayó, muitas crianças de 5, 6 anos, verbalizam ali, no coletivo, “nossa, eu sou igual a Tayó, então eu sou negra?”. Tayó é uma personagem superempoderada, que se sabe linda porque se vê pelos olhos da mãe dela. Isso é o encantamento, ela nao se sabia negra, mas que bom que com 5, 6, 7 anos ela está tendo condições pela literatura hoje de se entender, se reconhecer e se valorizar enquanto negra. Dei aula até o ano passado na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e recebia jovens com 25 anos, que relatavam que tinham acabado de se descobrir como negras.
Há alguns elementos recorrentes nas suas histórias, como a ancestralidade e o cabelo black power. Por que escolheu trabalhar com eles?
Esses são os elementos que faltam na literatura brasileira focada para os públicos infantil e juvenil. São elementos que os autores sempre tiveram grandes problemas para trabalhar. Ancestralidade é algo que é fundamental para qualquer origem étnico-racial, é um assunto visceral para todos e todas nós.
Para além disso, parto do princípio de que a África é o berço da humanidade, como cientistas já comprovaram há alguns anos. Para mim é o seguinte: independentemente da cor da pele, todos nós remontamos à África, então ancestralidade está em nós, acreditando nela ou não, basta olhar o legado de todas as pessoas que vieram antes da gente. Cabelo black power é recorrente, porque tanto no meio negro e no meio não negro ele continua a ser um assunto central. O cabelo crespo não é visto como bonito, como higiênico, como esteticamente coerente ou positivo.
Vivemos hoje em uma época de revisionismo e negacionismo histórico. Por que desconstruir o racismo é algo que ainda gera tantos embates e retrocessos?
Nós retornamos para um Brasil saído do… Eu ia usar a expressão colonialismo, mas nem vou, porque acho que ainda vivemos o colonialismo, a colonialidade está presente, e nós do movimento negro sempre pontuamos isso. O que acontece hoje é que está explícito. Como nós temos autoridades que não se furtam em demonstrar o seu racismo, por que os cidadãos comuns vão se furtar? Então quando temos um governo que coloca políticos todos alinhados em um mesmo pensamento de exclusão da população preta e desprezo pelo pobre, é isso que nós vamos ter: retrocesso. Não que esse retrocesso de práticas e pensamentos não existisse, ele sempre existiu, mas as pessoas eram mais discretas, se preocupavam com a forma como iam agir. Então é esse Brasil que estamos vivendo, capaz de olhar para mim, uma pessoa de 54 anos, e atirar uma pedra simplesmente porque estou com uma roupa branca.
Ao mesmo tempo, temos visto o tema entrar um pouco mais em pauta, aparecendo por exemplo no Oscar deste ano, cujo vencedor foi um curta justamente sobre black power. Que outros avanços você vê neste sentido?
O primeiro avanço que eu elencaria é toda a movimentação que os negros e negras estão conseguindo fazer nas redes sociais. As redes sociais se tornaram grandes plataformas de visibilidade coletiva. A gente consegue expor as práticas racistas, chamar as pessoas para o debate, com elas é impossível alguma pessoa dizer que o racismo não existe. Isso para mim é revolucionário. Outro espaço é a universidade, que vem sendo acessada por negros e negras. Isso é algo impagável, com o qual eu há 15 anos eu sonhava, mas não imaginava que alcançaríamos tanto.
Como seus livros podem transformar a relação de toda a sociedade com a cultura negra e africana?
Entendo que essa literatura que eu faço ajuda a criança negra a se reencontrar, a trazer esse encantamento ou reencantamento para seu corpo. Eu, por exemplo, era uma criança amada dentro da minha casa e na minha família, todos meu achavam linda, diziam que eu tinha olhos lindos, nariz lindo, boca linda. Mas cheguei na escola e conheci uma negação para meu ser e minha existência, e passei a não gostar mais de mim, a querer ser diferente para poder ser tratada com maior respeito. Então, neste caso, é um reencantamento. Para aquelas crianças que cresceram em lares onde pais e mães também viveram de forma visceral o racismo desse país, sem ter alguém para orientá-las de que “isso que fizeram com você é racismo, não aceite”, aí o primeiro momento é o encantamento de se entender como negra. Nós vivemos um tempo em que a literatura tem favorecido e proporcionado momentos dignos para que as crianças negras se reconheçam e se valorizem como tal. E isso é incrível.