A maior dor do mundo

“Ela chega sozinha. Diante de um balcão, uma mulher de uniforme pede que entregue brincos, pulseiras, a bolsa. Já curvada sobre o próprio ventre, é conduzida por um corredor até uma sala isolada onde passa a ser examinada, a intervalos regulares, por homens e mulheres que entram sem bater na porta, tocam em seu corpo, medem-lhe a pressão e saem. Dentro de uma hora, é levada para uma sala maior. Passa por uma sequência de camas e consegue ver, no caminho o rosto de mulheres: negras, brancas, muitas jovens e algumas já vividas. Poucas dormem. No final do corredor, entre a cama e a parede, uma cadeira azul. É para ela que apontam as duas mulheres que a conduzem”. A cena, ainda que traga aqui e ali elementos de ficção, não é preâmbulo de um conto policial. Nasceu do testemunho da enfermeira Maria de Fátima Santos durante a mesa Violência Obstétrica e o Nascer no Brasil, Seminário Diálogos entre a Academia e Movimentos Sociais, promovido pelo Grupo Direitos Humanos e Saúde (Dihs/ENSP). Maria de Fátima narrou a chegada de uma mulher em trabalho de parto a uma maternidade pública brasileira. Os elementos de ficção acrescentados para o parágrafo que abre esta reportagem são a bolsa, a pulseira e a fila de rostos de mulheres na enfermaria; o resto, é tudo verdade: a cadeira, a solidão, a violência.

Via email para o Portal Geledés por Sandra Martins de Pedro Leal David no ENSP

 

Maria de Fátima apresentou o trabalho A violação dos direitos das gestantes na perspectiva das leis, protocolos e políticas públicas. A enfermeira, que integra o Movimento pela Humanização do Parto, em Niterói, logo de início, mostrou a conclusão a que chegou: “A violação do direito das gestantes é gritante. Entre as causas estaria a assimetria do saber dos profissionais de saúde envolvidos no parto, a industrialização do corpo da mulher e a falta de locais preparados para recebê-la. O que se tem como regra é um hospital geral que tem uma maternidade”. A maternidade em que ela trabalha e que foi ponto de partida para sua pesquisa, hoje, segundo a própria enfermeira, apresenta melhores condições de receber mães e bebês. Mas os dados colhidos servem para traçar um panorama sobre a saúde da mulher que dá à luz no Brasil.

Um outro fator alarmante, observado por Maria de Fátima, diz respeito ao pré-natal. “Geralmente o pré-natal é muito ruim. Em casos extremos, você tem uma mulher que descobre, numa sexta-feira, que está grávida. No sábado, ela apresenta um sangramento. Dá entrada no hospital na segunda e acaba abortando”.

A situação das mães que saem da maternidade com seus filhos no colo também merece nota. “O ritual de passagem, quando tem internação, sempre digo que é um ritual carcerário. Ela entrega os pertences, vai para um pré-parto isolado. Você encontra a mulher na quinta, a paciente está lá desde segunda. A família, sem acesso a ela. Privacidade, nenhuma. Respeito ao outro, nenhum”. Enquanto Maria de Fátima fala, com um controle remoto passa as telas do powerpoint. A imagem de uma cadeira azul é projetada. Abaixo da cadeira, uma mancha de sangue. “Essa pra mim é a imagem símbolo disso tudo que estou falando. Muitas vezes, é nessa cadeira que a mulher fica sentada, até parir”. Ao concluir sua fala, a enfermeira lembrou das leis que regulamentam o parto e tentam humanizá-lo. “Elas existem, mas não são cumpridas. É como um guia da Unicef, sobre o mesmo tema, que é lindo mas não sai da gaveta”.

Retirar um projeto da gaveta, ainda que não soubesse exatamente por onde caminhar, foi o que fez a segunda palestrante da mesa. A fala de Lilian, tal qual a de Maria de Fátima, também se assemelhou a um testemunho. Ela nos contou como se descobriu doula. A palavra, nova para muitos, nomeia a mulher escolhida pela mãe que vai ter um filho para acompanhá-la no parto. A função tem sido exercita por profissionais de saúde, como enfermeiras, mas também por mulheres que fazem uma especialização. Foi exatamente esse o caso de Lílian, que é pedagoga. Mas essa é uma descrição do que é uma doula do ponto de vista externo. Lílian prefere definir de outra forma seu trabalho: “A doula é uma figura não muito grata, porque atrapalha o que está acontecendo na maternidade. Uma cesárea, por exemplo. Às vezes, a pessoa acha que tinha feito a melhor opção e a doula mostra que não. Isso atrapalha as rotinas médicas. Depois, até, foi ocorrendo uma mudança porque o médico começou a perceber que a paciente ficava mais tranquila com a gente”.

Ao falar sobre o trabalho da doula, Heloisa Lessa, enfermeira obstetra que tem se destacado nas discussões sobre o parto, no Brasil, buscou uma perspectiva histórica: “A doula surgiu na Colômbia. A ideia era que mulheres da comunidade, com experiência de parto, passassem a auxiliar a mulher que ia parir. Entre todas as funções que ela desempenha, a mais importante é segurar a mão da mulher que está parindo”.

Heloisa fechou o seminário do DIHS. Ainda que repleta de informações históricas e de fisiologia, enumeradas em velocidade, sua fala, talvez nem fosse necessário mais dizer, também assumiu a forma de um testemunho, dado do ponto de vista de quem já fez mais de 700 partos em casa. “Tem trinta anos, mais ou menos, que entendemos que o processo é hormonal. Quem comanda é o bebê. Como se sabe, o cérebro humano tem duas partes que não falam ao mesmo tempo. Um seria responsável pelas emoções e a outra pelo pensamento. O cérebro responsável pelo pensamento é o que geralmente atrapalha, trava a produção de ocitocina.  Tem 20 anos que a gente entendeu esse hormônio. É ele também que entra em ação no ato sexual, por exemplo. Do ponto de vista hormonal, portanto, ser penetrada por um pênis ou deixar uma cabeça sair é a mesma coisa. Então, se acendem a luz, a mulher não pare”.

Como quem sabe aproveitar cada um dos minutos a que cada palestrante teve direito no seminário, Heloisa seguiu criando pontes entre os aspectos fisiológicos do parto e suas causas e consequências na sociedade. Ainda sobre a ocitocina, questionou: “O que é de uma civilização sem o hormônio que produz o afeto entre mãe e filho? É por isso que a gente está na lama que está”.

A quantidade de cesárias desnecessárias estaria entre as causas desse déficit hormonal que gera consequências sociais. Para se ter uma ideia da mudança de mentalidade que é necessária para reverter esse quadro, a maioria das mulheres que chegam para parir num hospital público se sentem diminuídas por não terem plano de saúde e, portanto, condições de fazer uma cesárea. Heloisa Lessa, entretanto, vê muitos progressos nesse campo.  Ela lembrou que no caso específico do Rio de Janeiro, em muitos situações, o serviço prestado pelo SUS em maternidades tem sido uma boa opção para quem quer ter um parto bem assistido. A enfermeira evita, porém, falar em modelos e não faz uma condenação cabal da cesárea “O importante é entrar em trabalho de parto. Entrar em contato com a ocitocina. Por ser, como eu falei, um elemento fisiológico, a função da equipe médica é dar condição do parto acontecer. Parto não se ensina, parto não se prepara. Parto se vive. É dar condições pra que a mulher entre em contato com os hormônios. É um processo absolutamente instintivo. Já vi umas cinco vezes a mãe lamber o filho assim que nasceu e foi lindo. Só que ligou a câmera do GNT, não vai rolar.”

Assediadas por câmeras ou abandonadas à calmaria de uma maternidade numa zona rural; em casa, tranquilas ou vervosas; num hospital público ou particular, calmas ou ansiosas; de mãos dadas com uma doula, sozinha ou acompanhada da própria mãe: são essas as vozes que falaram pelo testemunho de Heloisa, Lilian e Maria de Fátima. De diversas formas, todas pareciam pedir a mesma coisa: o direito de serem ouvidas, afinal, como sentenciou Heloisa Lessa, de forma irretocável: “A dor do desrespeito é maior do que a dor do parto”.

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