“As cicatrizes do amor” em cena brasileira: o caso da mãe haitiana em Carlos Barbosa (RS)

“Retalhos da vida, revolteando as entranhas de quem as escuta. Atenção! O que aqui se conta, está a acontecer agora! em qualquer parte do mundo”.

por Profa. Dra. Sueli Saraiva via Guest Post para o Portal Geledés

A escritora moçambicana Paulina Chiziane, romancista que prefere afirmar-se contadora de histórias, escreveu uma das narrativas ficcionais mais representativas do desamparo ao qual uma mulher, pobre e mãe solitária pode ser enredada. No conto de 1989, o tempo narrado é o da guerra civil moçambicana (1975-1992), o narrador reconta uma comovente história (“Relato de manga verde com sal, arrepiante”), confessada por certa Maria, dona de um bar num campo de deslocados pela guerra, em que “gente humilde, sincera, andrajosa e descalça” comentam uma notícia de jornal em que mães, diante de obstáculos intransponíveis naquela época em que “a guerra tinha morto a estrada” (Mia Couto) haviam abandonado seus filhos.

Contrariando o apressado julgamento dos presentes sobre o fato noticiado, a dona do bar reflete: “– A maldade nasceu antes da humanidade. A culpa cabe às mães mas é de toda a sociedade – sentenciou a mulher”. Nesta passagem da narrativa, que vale a pena reproduzir mais extensamente, abrem-se os “tribunais da consciência”, de Maria, nas rememorações de Maria, e no silêncio de sua audiência, que inclui a nós, leitores.

– Não fuja da verdade, comadre, que a culpa está com as mulheres. O que dizes é suruma da bebedeira, estás embriagada, sim.

A voz de limão do homem duro era palha seca na fogueira tosca.

– O que vocês não sabem – disse Maria – é que cada nascimento tem uma história e cada ação, uma razão. Na minha juventude cometi o mesmo crime, ou melhor, ia cometê-lo. […]

Maria entristece. Ergue os olhos para o céu na súplica do silêncio. A mente recua na trajetória distante, mais veloz que a estrela cadente. Baixa os olhos para a terra infértil, salpicada de ervas tisnadas. O vulcão da recordação explodiu narrativas; as lavas caíram como soco nas gargantas abafando os acordes, calem-se todas as bocas, a comadre é que fala! A voz de Maria fez-se ouvir elas profundezas do tempo.

Maria passa a relatar a sua história pessoal, de amor, abandono, gravidez solitária, desamparo familiar, buscas pela sobrevivência, falsa solidariedade por parte de uma idosa (“caí nas mãos de uma farsante que me obrigou a trabalhar para ela, com ameaças de denúncia por violação da fronteira”), pensamento desesperado de abandono da filha e mesmo de infanticídio, amor maternal, arrependimento, reviravolta e fim.

– E a criança?

– É aquela ali, e já me deu dois netos.

Porque escondes os olhos, Maria? Talvez te envergonhes dos teus atos, talvez te arrependas do teu relato, ou mesmo te revoltas contra a sociedade que te conduziu aos caminhos da tragédia. As cicatrizes do amor rasgaram as crostas e jorraram um líquido sangue que escorre pelas curvas das tuas pálpebras.

A filha em questão, preparou a flecha que disparou certeira.

– Mãe, eras capaz de jogar-me na fossa, a mim?

– Perdoa-me, querida. Eu não queria dizer nada.

Apenas gostaria que os seres humanos tivessem mais humanidade, amor e fraternidade.

Na caserna de Maria há uma mulher que chora, e os soluços sincronizam com a makwalyela das palmeiras. Os corvos em revoada grasnam agouros, as nuvens já abalaram e o sol voltou a abrasar. As águas do Índico balançam com mais força sob o domínio do vento sul. No coração da noite haverá tempestade.

(Fecha-se a página da ficção moçambicana). Abre-se a página de um Jornal brasileiro, em 11 de março de 2015:

“Haitiana e casal brasileiro disputam criança no RS (Folha de S.Paulo, Cotidiano, reportagem de Paula Sperb).

Há exatos três dias, o mundo, e o Brasil com toda a força, celebrou o famigerado (em todos os sentidos do termo) “Dia Internacional da Mulher”. Dia de reflexão, enaltecimento das conquistas e lutas por equidade de gênero. Ainda neste espírito de reflexão permanente sobre o ser mulher, ser negra e ser pobre, tive um asco de perplexidade (mais um!) ao me deparar com relato tão claramente de desrespeito aos direitos de uma mãe pobre na tal “disputa pela guarda de uma menina”. Passado o primeiro impacto da perplexidade, não pude deixar de pensar no conto da Paulina Chiziane e no quanto esta mãe, jovem, negra e estrangeira, num país ostensivamente racista e classista deve estar passando para ter o seu direito materno preservado. Aliás, mãe nenhuma precisa ter “a guarda”, ela tem é direito de maternidade.

Não é cabível, obviamente, a relação direta entre o fato brasileiro e a ficção moçambicana, principalmente considerando-se o tempo, o espaço e o contexto social dos eventos e, mesmo as histórias pessoais dessas Mulheres-Marias. Contudo, é a partir da literatura que o nosso papel de humanos cognoscentes pode (e deve) aflorar, em momentos de dúvidas sobre a condição humana.

Deixando de lado afazeres urgentes, eu não poderia seguir o meu dia sem refletir, escrever e compartilhar minha perplexidade, esperando que essa história, cujos trechos do jornal, reproduzo abaixo, possa ter um final feliz (ainda que já traumático) para a jovem mãe que, paradoxalmente, luta com todo o desespero para ficar com a filha que “outros” julgam ter sido por ela abandonada.

“A guarda de uma menina de dois anos nascida em Manaus está sendo disputada por uma haitiana e um casal de brasileiros em Carlos Barbosa (RS), cidade de 27 mil habitantes na serra gaúcha”.

[…]

“O casal alega que a bebê foi abandonada com quatro meses, em 2012, aos cuidados da mãe adotiva do homem que obteve a guarda provisória. A haitiana nega. Ela diz que até fevereiro de 2013 buscava a filha todos os dias na casa da idosa, paga para cuidar da menina. Vizinhos ouvidos pela Folha confirmam a versão. A imigrante vivia num imóvel em frente à casa da família”.

[…]

“A juíza considera a certidão de batizado prova dos cuidados do casal. O batismo ocorreu em 2013, sem autorização da mãe, que é evangélica. A haitiana chegou grávida ao Brasil em 2012. Em Manaus, foi acolhida pela irmã Santina Perin. Segundo Perin, que morou no Haiti por 22 anos, é comum as haitianas deixarem os filhos com vizinhos para irem trabalhar”.

O final desta história está em aberto.

 

Ref.:

Paulina Chiziane: “As cicatrizes do amor”. In: Lourenço do Rosário & M. Lúcia Godinho. O conto moçambicano: Da oralidade à escrita. Rio de Janeiro: Te Corá Editora, 1994, p. 129-133.


 

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5210450928836319

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