A manutenção de Fundeb como estratégia para reorganização das comunidades escolares pós-pandemia do covid-19

Foi reportada, pela primeira vez, pelo escritório da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 31 de dezembro de 2019. Em 31 de janeiro de 2020, o surto foi declarado como Emergência de Saúde Pública. Em 11 de março de 2020, menos de quarenta e cinco dias depois, já havia se espalhado pelo mundo e a OMS declarou a disseminação comunitária do Covid-19, em todos os continentes, como pandemia. Para contê-la recomenda três ações básicas: isolamento e tratamento dos casos identificados, testes massivos e distanciamento social.

Em 4 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil editou a portaria nº 118/GM/MS, declarando Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, em razão de infecção humana pelo novo Conavid-19.

Em decorrência da situação de calamidade pública, Estados e Munícipios se organizaram para que autoridades públicas constituídas tratassem de organizar um arsenal jurídico, médico-profilático e social para manter as diversas comunidades e pessoas informadas, cuidadas e sobretudo, protegidas em todos os aspectos. A intenção neste momento foi preservar e zelar pelas vidas, único patrimônio que não se repõe.

Ousamos afirmar que desde os anos seguintes ao final da Segunda Grande Guerra Mundial, nos anos de 1940, a humanidade não se encontrava em tal estado de perplexidade, medo e questionamentos diante de um inimigo desconhecido. Não seremos mais as mesmas pessoas após a pandemia. As ações, reações e motivações do período que se seguirá precisam ser reorganizadas à luz de uma máxima que se consolidou neste período: a produção de conhecimento é o maior lastro e legado que se pode deixar as gerações seguintes. Conhecimento que seja capaz de responder aos fenômenos do mundo contemporâneo e produzir respostas rápidas aos desafios de viver e conviver em uma sociedade em que a diversidade, em todas as suas manifestações, é valor já agregado às diversas culturas. Muitas instituições, e mesmo, as pessoas terão de se reinventar diante dos contextos que se apresentarão no período seguinte ao isolamento obrigatório como medida de contenção do Covid-19. Nada pode ou deve ser como antes. Precisa ser melhor e temperado com razão e sensibilidade.

Nesta perspectiva, as escolas, sobretudo as públicas, que recebem literalmente todas as crianças, independente do lugar em que ocupam na pirâmide social; seus professores, professoras e suas comunidades, se constituem em espaços, lugares e sujeitos que precisam ser fortalecidos, cuidados e duplamente protegidos.

A escola tal e qual nós a conhecemos precisa ser reorganizada à luz de ações que garantam aprendizagens efetivas e produzam novos modos de lidar com o conhecimento. A maneira de aplicação do tempo passado com docentes precisa mais do que sempre ser um tempo de qualidade. Os recursos tecnológicos não devem ser substitutos da presença do professor/a no percurso escolar, e sim, estratégias para avançar/consolidar aprendizagem. 

Os especialistas fazem cálculos preliminares que sinalizam para o fato de que as crianças pobres, as mais atingidas sobre todos os aspectos pela alteração das rotinas de ensinar e aprender das escolas, terão um atraso significativo de pelo menos uma década em suas aprendizagens, caso medidas eficazes não sejam efetivadas. Todas as conquistas de quase duas décadas correm risco de retrocesso a atingir em cheio as pessoas e comunidades mais vulneráveis.

É neste momento ímpar da história da educação brasileira que o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais do Magistério (Fundeb) corre o risco de expirar, em 19 de dezembro de 2020. A situação já seria caótica para a maioria dos Estados sem ocorrência de fenômenos com mudança nas rotinas. Nos tempos que se avizinham, em um país assimétrico como o Brasil, pode significar a diferença entre aprender e passar pela escola.

As propostas de reorganização de calendários escolares se baseiam em uma visão homogênea para retomada das rotinas, descoladas da sensibilidade que o período exigirá, e organizadas como se todas as escolas e comunidades escolares possuíssem as mesmas condições e o processo de formação inicial e continuada de professores fosse igual em todos os espaços. 

O Brasil é um país de dimensões continentais e de muitas maneiras e olhares sobre o fazer docente. Só recentemente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aprovada (2018) com um direcionamento para que crianças partam de pontos e entendimentos diferentes de cultura e função da escola, que será balizada e aproximada pelos percursos escolares, de tal forma que, ao final, possam fazer a transição de alunos/as para cidadãs e cidadãos prontos a assumir responsabilidades e gozar de direitos. Plenamente.

Porém, o documento não tem efeito sem que condições mínimas sejam asseguradas. Caneta de gestor não garante qualidade para a educação sem estrutura e políticas públicas.

O momento é de colocar de lado as diferenças ideológicas e se unir em torno da defesa, proteção e fortalecimento da escola pública para criação de novos paradigmas em que se assentarão o planejamento, reorganização e desenvolvimento da sociedade brasileira. As instituições de ensino da rede pública podem ser a diferença entre um processo de reconstrução que torne a todos mais fortes, coesos e comprometidos de fato com a criação de novos parâmetros para regulação das relações em todos os âmbitos, ou a passagem direta sem pausa para o caos, o desemprego, a recessão. A hora é de união, contenção, planejamento, proteção e fortalecimento. Hora de repensar o legado a se deixar às gerações futuras.

Por isso, há necessidade da criação de uma frente suprapartidária que faça a defesa do fortalecimento da escola pública como estratégia para reorganização de agendas de desenvolvimento social pós-pandemia. 

O Fundeb

O Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais do Magistério (Fundeb) não é um único fundo; na verdade, é um conjunto de 27 fundos (26 estaduais e 1 do Distrito Federal) utilizado como mecanismo de redistribuição de recursos destinados à Educação Básica. Isto é, trata-se de uma espécie de poupança coletiva oriunda de tributos estaduais e federais, com o propósito de garantir o máximo de equidade, assegurados o direito de aprendizagem em que se pesem as diferenças sociais, geográficas e políticas, no que tange ao planejamento, organização e desenvolvimento de professores e comunidades escolares.

O principal objetivo do Fundeb é desenvolver e manter funcionando todas as etapas da Educação Básica – desde creches, Pré-escola, Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). O Fundeb entrou em vigor em janeiro de 2007 e se estenderá até 2020, conforme prevê a Emenda Constitucional nº 53, que alterou o Art. 60 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

O principal argumento para a manutenção do Fundeb é a diminuição das desigualdades na distribuição de recursos entre as redes de ensino: a partir da entrada em vigor do fundo as diferenças entre as redes que mais investem nos alunos e as que menos investem diminuíram consideravelmente. De acordo com um estudo técnico desenvolvido pela Câmara dos Deputados, sem a política do fundo, as desigualdades seriam da ordem de 10.000 por cento. Com o ordenamento determinado pelas regras do Fundeb, o distanciamento é da ordem de 564 por cento, o que representa ainda um percentual muito alto e é autoexplicativo sobre as condições em que se dariam as rotinas escolares nos lugares mais vulneráveis sem o contrapeso de regulação do fundo.

Ou seja, as dificuldades das escolas localizadas fora das zonas urbanas centrais dos Estados distantes do eixo Centro-Sul do Brasil, tendem a se agravar em qualquer tempo. Não seria exagero pressupor que o fazer pedagógico de escolas localizadas nos distritos de Porto Velho, nas várias comunidades ribeirinhas do Amazonas e do Pará, das aldeias dos diferentes povos indígenas e quilombolas, em cidades/bairros dormitórios serão as mais prejudicadas. Não merecem, pois, estas comunidades terem acesso a uma educação que lhes permita exercer direitos da cidadania plena e assumir com consciências seus deveres? 

O Fundeb promove, ainda, a regulação dos sistemas do ensino a partir do planejamento para atendimento a toda demanda da Educação Básica, amparando aos municípios no que diz respeito ao financiamento da educação, mas, em contrapartida condiciona que os recursos sejam utilizados para manutenção da qualidade e expansão da rede de maneira que cada ente federado responda de acordo com a etapa pela qual é responsável, tendo como documento norteador a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Assim, municípios são incentivados a se concentrarem na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, e os estados, nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

Por fim, ressalte-se que Estados periféricos sofrerão mais com a desativação do Fundeb. Em tempos de pós-pandemia esta diferença será ressaltada pelo quanto de dependência externa, de ausências das condições mínimas de dignidade, da falta de cumprimento de direitos subjetivos e, principalmente, a ausência de respostas rápidas para os fenômenos que surgirão e incidirão na diferença entre os que escolhem os percursos que querem fazer na vida e os que são escolhidos sem direitos que não seja o de se resignar.

O principal aspecto positivo do Fundeb (e do Fundef, que o antecedeu) é o fato de possibilitar o fluxo de recursos para a educação dos entes federativos a partir de um critério educacional (o número de matrículas em cada estado), o que lhe confere objetividade. Esse critério entra em contraste com o julgamento subjetivo e sujeito à influência política que marcava os convênios, instrumentos de repasse utilizados anteriormente.

Priorizando a noção de investimento por aluno, o Fundeb ampliou em 413% o menor valor investido entre as redes educacionais brasileiras (mesmo assim, esse gasto ainda está abaixo do valor investido em países desenvolvidos). O fundo também estabeleceu a necessidade de piso salarial para professores.

Já existe uma proposta de emenda à Constituição (PEC 15/2015), que torna o Fundeb permanente. Mas, a agenda econômica e eleitoral tem tomado, por sucessivas sessões, as pautas legislativas. Mas, depois dos dias difíceis que se seguirão as escolas e contextos pós-pandemia exigem uma tomada de posição emergencial.

O Covid-19 colocou como prioridade na agenda parlamentar de reorganização, repactuação e retomada do desenvolvimento em todos os níveis, a garantia de que escolas públicas receberão cuidados mínimos, que se tornarão a diferença entre nenhum a menos em direitos ou quem vai manter privilégios. A escolha nos parece simples diante do legado que esta geração deseja deixar às seguintes.

Em nosso entendimento, este é o momento de retomar e aprovar em caráter de urgência a referida emenda constitucional como estratégia a contribuir com a retomada dos processos de rotinas na educação básica.

Direito e Educação

Embora se tenha consolidado no século XX, com o surgimento do Estado Social, a Constituição da República de Weimar (1919) estabelecia que a educação das jovens gerações constituía o primeiro dever e direito natural dos pais e especula que a Constituição soviética de 1936 teria sido a primeira a reconhecer formalmente um direito à instrução e a Carta italiana, de 1947, inaugurado o uso da expressão ‘direito à educação’.

 No Brasil, em 1947, já se havia reconhecido o direito à educação nas Constituições de 1934 e 1946 e, segundo Silva (2001, p. 174), a Constituição Imperial, de 1824, foi “a primeira constituição, no mundo, a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva”. 

É verdade que a cidadania não incluía os escravos e as mulheres – mas é de se destacar que, embora não se mencionasse direito à instrução ou à educação, o dispositivo que assegurava “a instrução primária e gratuita a todos os cidadãos” (art. 179, XXXII) estava contido no título 8º “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros” (IMPERIO DO BRAZIL, 1824). 

À luz dos Direitos Sociais fundamentais, consubstanciados nos artigos 6º, 205 e seguintes da Constituição Federal de 1988, sob o aspecto das gerações dos direitos fundamentais, a educação é vital ao desenvolvimento humano, garantia que dá direito a ter direitos. A educação muito contribui para a melhoria da sociedade, pois está ligada à pessoa humana e sua dignidade, indicando existir conceitos jurídicos pré-existentes relacionados à própria natureza do homem. Neste sentido, os Direitos Fundamentais são artefatos para a garantia de uma existência livre, digna e igualitária a todos, como demonstra o caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

A garantia do direito público subjetivo à educação como direito individual e social, cuja efetivação depende do Estado e, também, da participação popular, mediante o emprego das garantias constitucionais existentes, é sobejamente conhecido. Por sua vez, as disposições constitucionais relativas à educação ensejaram aumento nas despesas públicas. Para garantir o pressuposto orçamentário, demandado pelo ensino, vinculou-se parcela da receita tributária, no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), regulamentado pela Lei nº 11.494/07, que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em que a educação pública brasileira é mantida, em regime de cooperação, por recursos financeiros de todos os entes federados (art. 212 CR/88) e por verbas transferidas, por meio do Fundeb. 

A Emenda Constitucional nº 53/06 reconheceu o êxito na universalização do ensino fundamental, de forma a exigir da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios empenho na manutenção e no desenvolvimento pleno da educação básica, entendida pelas educações infantil, de jovens e adultos e pelos ensinos fundamental e médio. Dessa forma, as normas constitucionais educacionais podem efetivar a cidadania e a autonomia do povo brasileiro, posto que são fatores democratizadores.

Outra questão importante sobre o Fundeb é a sua vigência: a Emenda Constitucional nº 53, que o criou, estabeleceu o prazo de quatorze (14) anos, a partir de sua promulgação, portanto, entre os anos de 2006 e 2020. Infelizmente, a grande massa popular ainda desconhece a importância do Fundeb, e o quanto sua atuação é fundamental para romper com a barreira da desigualdade no país, dando sustentação para a equalização de oportunidades, universalização e padrão mínimo de qualidade do ensino, sendo de grandiosa importância para educação brasileira. O Fundo presta assistência técnica, dentro do propósito de assegurar a ação supletiva do Governo Federal, como determina nossa Constituição. Um dos resultados da luta pela democracia, é o direito à escola pública gratuita, o que é garantido na Constituição Federal de 1988. 

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar, no financiamento da educação básica, a melhoria da qualidade de ensino, de forma a garantir padrão mínimo definido nacionalmente (CF/88, art. 60, inciso XII, §1º).

A garantia de permanência do Fundeb, sobretudo após este estado de exceção pelo qual passamos, é assumir responsabilidade com o futuro investindo em educação no presente. O passado precisa nos servir, no mínimo, como lembrança de erros que não podemos mais cometer. Manter o Fundeb é fazer uma escolha que nos parece fácil: manter o desenvolvimento social para todos e todas ou manutenção de privilégios para alguns e também a instabilidade, a insegurança e a miséria para a maioria.

Direito a educação e a proibição do retrocesso

O término do Fundeb, sem dúvida, vai de encontro ao princípio da vedação ao retrocesso social, que tem como fundamento a proibição do legislador em reduzir, suprimir, diminuir, ainda que parcialmente, o direito social já materializado em âmbito legislativo e na consciência geral. A continuidade do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação é a garantia de um Brasil melhor, para que todos tenham acesso a uma educação pública de qualidade, em que não somente seja possível o acesso à escola, mas também a permanência nela.

No cenário atual, o Fundeb responde por cerca de 63% do financiamento da educação básica – da creche ao ensino médio. Em 40% dos municípios, o Fundo representa ao menos 70% de todo orçamento. Desde 2010, a União passou a complementar o valor com recursos próprios, num montante mínimo que representa 10%. Frisa-se, ainda, que tramita na Câmara e no Senado propostas para a sua permanência. 

A mais avançada é a PEC 15/15, que está sendo analisada na Câmara. A indicação da proposta é aumentar a complementação da União para 15%, em 2021, com acréscimo anual de 1 ponto percentual até chegar a 20%, em 2026. Todavia, há certa resistência do atual governo, o qual vem se mostrando totalmente contrário a qualquer tipo de avanço na educação. 

A ideia do Ministério da Educação (MEC) era de apresentar uma proposta prevendo apenas uma alta de 10% a 15% nos repasses da União ao fundo, porém o governo cogita não enviar esta proposta ao Congresso. Hoje, os municípios que mais sofreriam com o fim do Fundeb estão nas regiões Norte e Nordeste. O impacto negativo do corte afetaria 71% dos municípios brasileiros (3.701), chegando a atingir, na região Norte, a totalidade dos municípios do Amazonas, Amapá, Pará e Roraima; e, no Nordeste, o Maranhão. 

A vedação ao retrocesso social é garantia constitucional implícita, ideia de direitos sociais mínimos exigíveis imediatamente e está ligada à constituição da cidadania e deve expressar compromissos mínimos por parte do Estado. Educação é prioridade de todo cidadão e dever estatal.

Por que defender a permanência do Fundeb?

A crise desencadeada pelo Covid-19 evidenciou a face mais perversa da fragilidade estrutural e agigantou as desigualdades sociais sobre qualquer aspecto que se analise: os serviços públicos se mostraram ineficientes e obsoletos. Os sistemas de saúde são insuficientes e já começam a entrar em colapso em alguns estados. Trinta e cinco milhões de pessoas em todo o Brasil ainda não tem acesso às condições mínimas que são demandadas como profilaxia à doença: saneamento básico. Rondônia, por exemplo, é um exemplo desta estatística: em sua capital, Porto Velho, apenas 3% da população tem acesso a uma agenda que foi resolvida no resto do mundo no século XIX. Quase 20% da população brasileira vive na informalidade (38 milhões de pessoas). As moradias atestam contra a dignidade humana para grande parte da população, que não consegue nem fazer três refeições por dia, quanto mais manter a higiene básica, que diminui o risco de contaminação. A pandemia colocou sobre a luz do dia a face mais cruel de um Brasil que não é mãe gentil a todos e todas as brasileiras. O que dizer então dos sistemas de ensino?

O Fundeb é uma previsão constitucional e uma provisão legal. Isso se constituiu em garantia de que estados e municípios tivessem condições de planejar suas rotinas pedagógicas sem um distanciamento tão grande. O fundo, além disto, representa a materialidade possível aos Planos Nacionais de Educação que se desdobram em estados e municípios, regulando que os processos, com respeito às diferenças regionais, possam acontecer em momentos similares. Ou seja, os/as estudantes partem de pontos diferentes a partir da cultura local e deveriam seguir percursos similares regulados pelas escolas e propostas de aprendizagem.

Não é mais possível traçar um planejamento pós-pandemia sem pensar na reconfiguração, repactuação e reorganização das escolas. A escola tal e qual nós a conhecemos se mostrou ineficiente para responder aos desafios de produzir conhecimento. A educação enciclopédica, de memorização não responde às necessidades da transição de alunos e alunas para cidadãos e cidadãs comprometidas consigo, com suas famílias, comunidades, planeta. Porém, as assimetrias sociais, econômicas e culturais também não nos permitem acreditar que um decreto de cima para baixo seja capaz de recompor as relações e promover a aprendizagem. Caneta de gestor, reiteramos, não garante aprendizagem das comunidades escolares. O que pode provocar avanços importantes é formação de professores (inicial e continuada), fortalecimento estrutural das escolas e produção de material didático que desafie pessoas a desenvolverem saberes, para que sejam a diferença que o mundo precisa para evoluir.

A pandemia precisa deixar um legado positivo em meio a tanta dor, perdas, instabilidade e insegurança: o desejo de nos tornarmos seres humanos mais preocupados com as pessoas do que com a economia. Economia se recompõe com pessoas fortes e dispostas a contribuir para uma sociedade mais equânime. 

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) acaba de ser aprovada e ratificada pelo Conselho Nacional de Educação. O documento possível diante das condições políticas e pedagógicas de nossas escolas, se tornará absolutamente inviável sem que as escolas tenham todas as mesmas condições estruturais e professores e professoras com identidade docente consolidada, comprometidas com sua função e papel de intelectuais a serviço de avanços estendidos.

Não é o momento de proselitismo e nem de fazer politicagem com o desmonte e retrocessos que os efeitos do pós-pandemia podem causar. É momento da união em torno de um grande projeto de acolher, fortalecer e consolidar autonomia e identidade docente. E, não se faz isso, sem recursos. Recursos que sejam divididos igualitariamente. Que contribuam para que escolas do Norte e Nordeste tenham condições de avanços tal e qual as do Sul e Sudeste. Por isso, manter o Fundeb é essencial. 

Não se pode permitir que certas práticas acintosamente desafiem direitos tão duramente conquistados em um Brasil desigual e assimétrico. Não podemos permitir o constrangimento de que crianças ribeirinhas, quilombolas, que por vezes não contam nem com energia elétrica em seus espaços, sejam ainda mais prejudicados com a ausência de recursos para contemplar suas especificidades.

Para fazer jus a escola que se precisa no momento é preciso se desacomodar e iniciar o planejamento de ações pós-pandemia. Será necessário constituir uma comissão de profissionais, especialistas comprometidos de fato com as pessoas e com a reconstrução do país. Pessoas da área da educação, da indústria, do comércio, das relações exteriores, da economia, da agricultura, da produção cultural. O Fundeb é a garantia de que as práticas do Brasil Bélgica chegarão ao Brasil Ruanda. É a garantia de que o clientelismo político não interfira na organização e distribuição dos recursos.

Então, o que se propõe para o momento é:

  1. A criação de uma frente suprapartidária com parlamentares de partidos diversos para aprovação do Fundeb por, pelo menos, mais dez anos;
  2. A criação de uma Comissão de Especialistas para planejamento, monitoramento e avaliação das ações pós-pandemia;
  3. A criação de uma equipe de especialistas para planejarem ações de adequação e mitigação das perdas que este período deixará nas pessoas em todas as frentes. O Estado brasileiro precisa se responsabilizar por todas as pessoas e gerenciar a volta à normalidade a médio e longo prazo. A curto prazo precisa cuidar de pessoas. É o papel do Estado.

O direito à educação vem abrindo caminho, a partir da positivação em seu mais alto grau, com a constitucionalização da vinculação de recursos, da obrigação financeira mínima da União em relação ao Fundeb, do direito público subjetivo ao ensino obrigatório. Torna-se mister a preservação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, bem como sua continuidade. Uma vez concretizados, os direitos sociais não podem sofrer retrocesso, deixar de serem oferecidos pelo Estado. Principalmente, em se tratando de direitos subjetivos em um país tão desigual como o Brasil. O entendimento é de que uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, institui direitos, e este se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania, não podendo ser absolutamente suprimido.

A garantia e ampliação do direito à educação deve estar prontamente protegido, ser incessantemente garantido, além do diálogo permanente entre os educadores e os operadores do Direito, para que se possa promover a densificação de norma como a do art. 60, § 1º do ADCT, com a redação dada pela EC no 53/2006 (BRASIL, 2006b), que se refere ao financiamento da educação básica de forma a garantir um padrão mínimo de qualidade definido nacionalmente. 

Por fim, concluímos com a esperança de que este não seja mais uma leitura utilizada só em um momento de comoção em face de uma pandemia: o objetivo é prioritariamente este, mas, para além de um momento propor que se repense como as escolas precisam se adequar aos novos tempos e com quais professores e estrutura. Isso é condição fundamental para que possamos deixar às gerações futuras um legado que permita que zelem, ampliem e, sobretudo, não diminuam os avanços engendrados ao longo dos últimos vinte anos. 

O direito à educação para exercício da cidadania plena está para além da reorganização do calendário escolar: será necessário promover a simetria entre os processos por meio da gerência reguladora e despida de interferência política nos recursos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Maria Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2004. Coleção Saraiva de Legislação

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. 18. ed. rev., atual. e ampl.  Petrópolis: Vozes, 2011.

 

¹Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

² Advogada. Assessora na Defensoria Pública de Rondônia.

 

Leia Também: 

Geledés se posiciona à consulta pública do Conselho Nacional de Educação (CNE)


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Grupo da FE discute relações étnico-raciais na educação

Na escola, nosso primeiro ambiente de convivência pública, construímos...

Enem: Mais de 4 mil participantes tinham acima de 60 anos

Entre os 3,3 milhões de estudantes que fizeram...

Piso salarial do magistério é constitucional, diz o STF

  O Supremo Tribunal Federal (STF) considera constitucional...

para lembrar

O direito dos mais vulneráveis de sobreviver ao coronavírus

A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos,...

China e países africanos promovem cooperação na luta contra a epidemia

Recentemente, um pequeno vídeo sobre experiências chinesas na luta...

O direito universal à respiração

Se a Covid-19 é expressão espectacular do impasse planetário...

Os impactos da COVID-19 nas políticas públicas da educação básica

ALEXSANDRO SANTOS, pós-doutorando em Administração Pública e Governo (FGV),...
spot_imgspot_img

População de rua no Brasil cresceu quase 10 vezes na última década, aponta Ipea

A população em situação de rua no Brasil aumentou 935,31% nos últimos dez anos, segundo levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base em...

Saúde mental dos idosos ainda sofre os impactos da pandemia

Após anos de enfrentamento da pandemia da Covid-19, torna-se evidente que os idosos estão entre os grupos mais afetados em termos de saúde mental. A melhoria das...

Jurema Werneck recomenda livro com visão de mulher negra diante da pandemia

Segundo a ativista, pode-se encontrar também no livro, Negra percepção sobre mim e nós na pandemia, um conjunto de cicatrizes individuais, adquiridas na pandemia...
-+=