Geledés se posiciona à consulta pública do Conselho Nacional de Educação (CNE)

Posicionamento de Geledés Instituto da Mulher Negra à consulta pública do Conselho Nacional de Educação (CNE) relativa à proposta de Parecer que trata da Reorganização dos Calendários Escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de Pandemia da COVID-19.

 

Por Suelaine Carneiro

Quem Somos:

Geledés Instituto da Mulher Negra é uma organização da sociedade civil fundada em 30 de abril de 1988, que se posiciona em defesa de mulheres e negros por entender que são segmentos sociais que padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira. Posiciona-se também contra todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como: a lesbofobia, a homofobia, os preconceitos regionais, de credo, opinião e de classe social.

Compreendemos a educação como um direito humano, cabendo ao Estado brasileiro garantir e efetivar o direito ao acesso, permanência e conclusão nos sistemas de ensino, que devem desenvolver uma educação adequada à todas as pessoas, cumprindo assim as obrigações determinadas em nossos princípios constitucionais, nas normativas  internacionais dos quais o Brasil é signatário, na legislação educacional e no conjunto de Diretrizes Curriculares Nacionais em vigor na educação brasileira, que orientam o planejamento curricular, metas e estratégias para a realização de ações que incorporem a igualdade, a diversidade e a  equidade. Destacamos também duas agendas globais assumidas por Estados-membros das Nações Unidas, voltadas para a igualdade e equidade das quais o Brasil é signatário: a Década Internacional de Afrodescendentes 2015-2024, e Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estruturada a partir de 17 objetivos e 169 metas realizáveis no período 2015-2030.

Atuamos para proteger, assegurar e expandir os direitos educativos de negras e negros, e para isso realizamos projetos para a igualdade e equidade de raça e gênero na educação; atuamos em rede, com diversos atores da sociedade civil,  em defesa da educação pública de qualidade e por mais investimentos para a área da educação; pela efetiva implementação da educação das relações étnico-raciais e da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares;  por ações  de formação que contemplem as questões de gênero e raça, o enfrentamento do racismo e do sexismo.

Neste momento de pandemia pelo coronavírus, defendemos o isolamento social como estratégia de redução do COVID-19, conforme determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde. A suspensão das aulas é uma medida de prevenção ao contágio, auxilia na redução dos impactos no sistema de saúde e ajuda a salvar vidas.

Mas o isolamento social implica no confinamento nas casas, e que seja realizado em condições de bem estar, direito que deveria ser garantido a todas as pessoas, mas cuja realização fica comprometida a partir das possibilidades de acesso à renda, saneamento básico, alimentação, entre outras necessidades. 

O direito a uma vida digna não está garantido à todas as pessoas, em particular para muitos estudantes dos diferentes níveis e etapas da educação brasileira. Para além da não realização do processo pedagógico em razão do distanciamento social, para muitos deles e delas o isolamento representa o brusco rompimento com um espaço de afetividade, mas para outros impacta no acesso à alimentação e à higiene. Estas realidades convivem diariamente nas nossas escolas, e precisam de um olhar atento na elaboração de Proposta para a reorganização dos calendários escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais em razão da COVID-19.

Vivemos uma situação de emergência[1] em razão da situação de vulnerabilidade extrema em que vivem muitos estudantes, com a impossibilidade de seguir qualquer recomendação para a contenção da COVID-19.  Neste sentido, são necessárias ações e recomendações que assegurem, durante o período de isolamento, condições mínimas para a realização do direito à educação, e que as propostas considerem, prioritariamente, sua adaptabilidade às condições de vida dos estudantes mais vulneráveis. 

Apresentamos a seguir algumas contribuições que dialogam com estes princípios.

Destaques da Proposta:

Concordamos com a análise contida na Proposta de Parecer, que destaca que a situação que se apresenta em decorrência da pandemia da COVID-19 não encontra precedentes na história mundial do pós-guerra. Segundo a UNESCO, milhões de estudantes estão sem aulas com o fechamento total ou parcial de escolas e universidades em mais de uma centena de países devido à pandemia de coronavírus. No Brasil, as aulas presenciais estão suspensas em todo o território nacional.

A Proposta também elenca os seguintes desafios para a reorganização dos calendários escolares, considerando as condições particulares de cada rede, escola, professores, estudantes e suas famílias:

 como garantir padrões básicos de qualidade para evitar o crescimento da desigualdade educacional no Brasil? 

 como garantir o atendimento dos objetivos de aprendizagens previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nos currículos escolares ao longo deste ano letivo? 

 como garantir padrões de qualidade essenciais a todos os estudantes submetidos a regimes especiais de ensino que compreendam atividades não presenciais mediadas ou não por tecnologia de informação e comunicação? 

 como mobilizar professores e dirigentes dentro das escolas para o ordenamento de atividades pedagógicas remotas?

Destacamos algumas questões que precisam ser contempladas na elaboração de Proposta de reorganização dos calendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais para o enfrentamento dos desafios destacados acima:

A suspensão das aulas presenciais em todo o território nacional agrava nossos problemas correntes relativos ao processo de ensino e aprendizagem de crianças, jovens e adultos que frequentam estabelecimentos de ensino, pois o isolamento social provoca danos aos estudantes,  resulta em instabilidade emocional, ansiedade e medo. Seus reflexos impactarão o calendário escolar vigente e o próximo. 

Outra ordem de problema que se intensifica com o confinamento é o aumento dos casos de violência doméstica, um fenômeno que afeta mulheres de todas as classes sociais em razão do machismo que estrutura nossa sociedade, e que exige ações de proteção articuladas entre os diversos programas sociais e de segurança, sendo a educação espaço essencial para o desenvolvimento de propostas educativas que reafirmem a igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres, assim como entre negros e não negros. 

Todas as crianças e adolescentes, durante a quarentena, também estão mais expostas aos seguintes riscos e violências: exposição à publicidade voltada à criança; risco de acidentes domésticos; trabalho infantil; violências e abuso sexual, sobretudo das meninas[2].

O isolamento social provoca impactos nas famílias, particularmente naquelas em situação de vulnerabilidade social, moradoras de territórios com precárias condições de infraestrutura e serviços públicos, cuja renda as localizam nas classes C e D, formadas principalmente por pessoas negras, grupo que sente com maior força os impactos da crise econômica pela qual atravessa o país, pois integra as altas taxas de desemprego, ou ocupa as profissões mais precarizadas em termos das condições do trabalho realizado e dos rendimentos auferidos. Além disso, são maioria nos serviços considerados essenciais durante a pandemia: enfermeiras, trabalhadores da limpeza urbana, faxineiras, operadores de telemarketing, seguranças, trabalhadores da construção civil, entre outros, estando mais vulneráveis ao contágio[3], e são aquelas e aqueles que não estarão em suas residências para orientar suas filhas e filhos na realização das atividades escolares.

As desigualdades entre os estudantes brasileiros, que são atravessados pela profunda desigualdade racial, tendem a se aprofundar, e podem ser sintetizados a partir das seguintes informações do Censo da Educação Básica 2019 (Inep/MEC, 2020)[4]:  brancos são maioria na creche (54,1%) e na educação profissional concomitante ou subsequente (48,5%); negros são maioria nas demais etapas de ensino, em especial na EJA ( 75,8% do EJA fundamental e 67,8% do EJA médio). Os dados evidenciam as diferentes condições para o acesso, permanência e conclusão de crianças, jovens e adultos negras e negros nas diferentes etapas de ensino. 

As comunidades quilombolas enfrentam um cotidiano de dificuldades para a realização das aulas em razão das condições de infraestrutura de suas escolas, se concentram em maior número nas regiões norte e nordeste, locais onde as escolas contam  com menos recursos pedagógicos e baixa cobertura de acesso à internet (Inep/MEC, 2019), situação que se reflete em seus lares, a maioria sem acesso à água tratada e saneamento, além de viverem sob ameaças constantes de invasão de seus territórios por grileiros e garimpeiros, situações agravadas com o isolamento social. 

O Parecer deve considerar as múltiplas desigualdades que conformam nossa sociedade, onde cerca de 39% dos domicílios brasileiros não tem nenhuma forma de acesso à internet[5] e 36% não têm coleta de esgoto[6], portanto as recomendações devem considerar estas realidades dos lares de nossos educandos e dos territórios em que muitas unidades escolares estão inseridas, destacando a necessidade de um conjunto de propostas pedagógicas que possam ser realizadas a partir de condições diversas e adversas.

■ No Brasil, 58% dos domicílios não têm acesso a computador, segundo a pesquisa TIC Domicílios 2018, do Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação)[7].

A realização de atividades pedagógicas não presenciais, mediadas ou não por tecnologia de informação e comunicação “requer planejamento, recursos técnicos e tecnológicos, formação profissional, modelo híbrido de oferta, de modo a se adequar a realidade dos sujeitos (PELLANDA et al., 2020, p.18).

■ O calendário escolar deve ser revisto a partir dos efeitos da pandemia na vida dos estudantes, à exposição ao contágio e às situações de luto nas famílias, de forma a ressignificar as perdas, devendo ser reafirmada no Parecer a orientação do CNE: no processo de reorganização do calendário escolar, o ano letivo pode, em situações determinadas e para efeito de reposição de aulas e atividades, não coincidir com o ano civil.  No processo de reorganização dos calendários escolares, é fundamental que a reposição de aulas e a realização de atividades escolares possam ser efetivadas preservando a qualidade de ensino[8], consideração fundamental em razão das muitas dificuldades para a reposição do calendário de 2020.

 ■ É necessário rever o prazo para contribuições ao Parecer, pois não houve tempo hábil para ampla disseminação do processo de consulta aos profissionais da educação, gestores escolares, familiares, conselhos escolares, sindicatos, representações estudantis, entre outros, e desta forma efetivar o princípio da participação democrática em importante processo de escuta e elaboração de recomendações sobre uma situação extremamente delicada da educação brasileira. São atores importantes para o desenho e execução da política pública, fundamentais para a realização de propostas para a superação dos desafios impostos pela pandemia.

Nossas observações buscam contribuir para que as orientações para a reorganização do calendário escolar e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia de COVID-19 assegurem o direito à igualdade de condições, e ofereçam possibilidades para o enfrentamento do racismo e do sexismo na educação brasileira, e assim consigamos superar as desigualdades educacionais vigentes.

 

Referências:

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da Educação Básica 2019: Resumo Técnico. Brasília, 2020. Disponível em http://portal.inep.gov.br/documents/186968/0/Resumo+T%C3%A9cnico+%28vers%C3%A3o+preliminar%29+-+Censo+da+Educa%C3%A7%C3%A3o+B%C3%A1sica+2019/73e6de67-2be3-413f-9e4c-90c424d27d96?version=1.0

 

GRACIANO, M. (Org.). Educação também é direito humano. Ação Educativa. Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. São Paulo, 2005. Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/a_pdf/livro_acao_educativa_direito_educacao.pdf

 

MELLO, D. Mais de um terço dos domicílios brasileiros não tem acesso à internet. Agência Brasil. 24.07.2018. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/mais-de-um-terco-dos-domicilios-brasileiros-nao-tem-acesso-internet

 

NITAHARA, A. Negros são maioria entre desocupados e trabalhadores informais no país. Agência Brasil, 13.11.2019. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/negros-sao-maioria-entre-desocupados-e-trabalhadores-informais-no-pais

 

PELLANDA, A. COVID-19, o novo coronavírus. Guia para comunidade escolar, família e responsáveis, e profissionais da educação e proteção da criança e do adolescente. V1. Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Disponível em https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/COVID-19_Guia1_FINAL.pdf 

 

PELLANDA, A.; CARDOSO, S.; SANTANA, S.; ABDALLA, Y. Guia COVID-19. Educação e Proteção de Crianças e Adolescentes. v.2. Campanha Nacional pelo Direito à Educação; Cada Criança, 2020. Disponível em https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/COVID-19_Guia2_FINAL.pdf

 

PORTAL MEC. Conselho Nacional de Educação esclarece principais dúvidas sobre o ensino no país durante pandemia do coronavírus. 31.março.2019. Disponível em http://portal.mec.gov.br/busca-geral/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/87161-conselho-nacional-de-educacao-esclarece-principais-duvidas-sobre-o-ensino-no-pais-durante-pandemia-do-coronavirus

 

REQUISITOS Mínimos para a Educação em Situação de Emergência: crises, crónicas e reconstrução. Portugal: Instituto Politécnico de Viana do Castelo/Escola Superior de Educação, 2006. Disponível em http://internacional.ipvc.pt/sites/default/files/livro_INEE_MSEE_PT.pdf

 

SCHINCARIOL, J.; SARAIVA, A.;  ROSAS, R. No Brasil, 36% dos lares não têm coleta de esgoto, mostra IBGE. Valor Econômico, 06.11.2019. Disponível em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/06/no-brasil-36percent-dos-lares-nao-tem-coleta-de-esgoto-mostra-ibge.ghtml

 


[1] http://internacional.ipvc.pt/sites/default/files/livro_INEE_MSEE_PT.pdf

[2] https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/COVID-19_Guia1_FINAL.pdf

[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/negros-sao-maioria-entre-desocupados-e-trabalhadores-informais-no-pais

[4] http://portal.inep.gov.br/documents/186968/0/Resumo+T%C3%A9cnico+%28vers%C3%A3o+preliminar%29+-+Censo+da+Educa%C3%A7%C3%A3o+B%C3%A1sica+2019/73e6de67-2be3-413f-9e4c-90c424d27d96?version=1.0

[5] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/mais-de-um-terco-dos-domicilios-brasileiros-nao-tem-acesso-internet

[6] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/06/no-brasil-36percent-dos-lares-nao-tem-coleta-de-esgoto-mostra-ibge.ghtml

[7] https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/COVID-19_Guia1_FINAL.pdf

[8] http://portal.mec.gov.br/busca-geral/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/87161-conselho-nacional-de-educacao-esclarece-principais-duvidas-sobre-o-ensino-no-pais-durante-pandemia-do-coronavirus

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