A morte da empatia e a vitória da indiferença

O Brasil fracassou no enfrentamento à pandemia da Covid-19. Além de não ter conseguido evitar a fúnebre coleção de corpos empilhados sob as estatísticas do novo coronavírus, que já alcançaram os seis dígitos, este mais recente recorde de mortes é recebido com indiferença por parcelas significativas da sociedade brasileira: seja pelo negacionismo da doença e da ciência ou por declarações de autoridades, que reforçam certo desdém face à perda de “alguns tipos” de vida: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Se as vítimas de morte já são mais de 100 mil em agosto, o modelo estatístico do Instituto for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington (Seattle) aponta para a dramática estimativa de 192,5 mil mortos até 1º de dezembro, segundo assinala o epidemiologista Rômulo Paes, pesquisador titular da Fiocruz Minas e consultor sênior da ONU em proteção social junto ao Birô de Crise e ao Centro Regional para a África.

Assim, o calvário da pandemia alcançará as celebrações natalinas com as mortes naturalizadas. Sem empatia com o luto do outro, boa parte da sociedade continuará fazendo jus à tradição cultural racista, hierárquica e patrimonial, já que as maiores vítimas de morte da Covid-19 – pobres e pardos – partilham de igual perfil das vítimas “invisíveis”, que mais morrem da violência policial na lida da sobrevivência nas periferias. “Nada se distribui igualitariamente no Brasil. Os efeitos letais da pandemia se concentram nas classes subalternas, nos territórios vulneráveis, portanto, são efeitos experimentados desigualmente. E o Brasil continua passando ao largo disso”, considera Luiz Eduardo Soares, cientista político, antropólogo e escritor.

Será a morte da empatia? “A sociedade de uma forma geral não se comove, não se revolta, não se transporta para o lugar dessas famílias enlutadas: não age contra o massacre, o banho de sangue, o genocídio das vítimas da violência e, de igual maneira, a situação também se repete nesta pandemia”, considera Luiz Eduardo Soares. “Chegamos à marca de 100 mil mortos, e o governo vira o rosto, negligencia. Isso se tornou um espetáculo cotidiano, ao qual a sociedade parece ter se acostumado”, avalia. Ressalvando a ação de grupos específicos que atuam em defesa solidária e altruísta aos mais vulneráveis de forma episódica e circunstancial, Luiz Eduardo Soares considera a falta de empatia uma característica dominante da sociedade brasileira.

“Se vivêssemos uma cultura igualitária, sentiríamos repulsa pela ordem social vigente, não só hoje, mas historicamente, marcada pelo racismo estrutural e desigualdades tão profundas. Já a teríamos transformado”, afirma. Além disso, tais valores igualitários não são trabalhados da forma como deveriam no processo educacional no país, pelo qual determinados elementos da cultura são transmitidos e incorporados, considera Luiz Eduardo Soares. “Por isso, segmentos muito numerosos se mostram absolutamente frios, indiferentes e até refratários à compaixão e à empatia. A empatia é vivida a conta-gotas, homeopaticamente, e se distribui apenas entre os iguais”, frisa ele.

Considerando a empatia uma meta – ou utopia – a ser alcançada, o escritor Ailton Krenak, doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora e um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, faz coro com Luiz Eduardo Soares ao sustentar a importância da educação e da cultura para a vivência da empatia e de sociedades mais justas. Mas parte de uma perspectiva da natureza humana diferente da noção de Jean Jacques Rosseau: “É preciso parar com a ilusão de achar que é natural e espontâneo no ser humano a solidariedade, o afeto”, afirma. Em contraposição à dimensão humana do labor – atividade corporal natural e indispensável à sobrevivência –, Ailton Krenak faz analogia da empatia a um tecido em construção. “Imagine o sofrimento íntimo ao ouvir daquele que é responsável pela governança, por inspirar uma ideia de governo no país, dizer: ‘Já deu 100 mil, aí? Então toca pra frente, vai tocando’”. Para o escritor, esse comportamento do presidente Jair Bolsonaro semeia um ambiente social de irritação e de ódio. “Infelizmente, não temos líderes, mas, antes, estão em cargos de comando gerentes sem empatia alguma, que administram linhas de produção, linhas de morte, administram coisas”, afirma Ailton Krenak.

A cooperação para a ação coletiva é fundamental para o enfrentamento da pandemia. Nesse contexto, o individualismo exacerbado e o conformismo face às injustiças, de base cultural, mas também de grande influência fundamentalista neopentecostal, são alguns dos aspectos que explicam a falta de empatia de grande parte da sociedade brasileira face às mortes, avalia o cientista social Robson Sávio, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas. “Assistimos à descrença na possibilidade da ação do estado, de ações coletivas, em prol do bem comum, porque há difuso um sentimento de criminalização da política, do bem público, de criminalização das noções de coletividade, de fraternidade, de associativismo”, afirma ele, lembrando que, na guerra ideológica do governo, as ações solidárias são associadas à ideia de “comunismo” e postas em termos de “encarnação do mal” a ser combatido.

Um país dividido

Sem qualquer interesse em agir para unificar o país e a ação de enfrentamento à pandemia, o governo federal dobrou a sua aposta no confronto à ciência e às orientações de organismos internacionais. A estratégia focada em desautorizar as autoridades simbólicas – como universidades, a imprensa, a justiça, os intelectuais – procura destituir os poderes impessoais nelas representados para o deslocamento da autoridade àquele que as desafia, ou seja, o presidente da República, analisa o psicanalista Christian Dunker.

“A pandemia chegou ao Brasil e encontrou uma gestão que aposta na polarização e na divisão do país como método de governo. Tínhamos já, em nosso momento, uma séria divisão, a partir da ascensão de um discurso que foi eleito na base da produção de inimigos, para justificar ações intempestivas, ações que acumulam poder naquele que está governando o país e naqueles que o cercam”, observa Dunker. “E o que acontece quando esse método enfrenta uma pandemia, que não é inimigo político, é um fato que vem da natureza, vem desse lugar terceiro, que não se pode admitir como algo que nos une?”, indaga. Como esse “terceiro” teria potencial para unificar o país, a negação da doença e da ciência, que aponta para as formas de combate, tornaram-se fundamentais para a manutenção da narrativa da guerra.

E tal narrativa foi mantida, mesmo diante da perspectiva de mais perdas de vidas. “O negacionismo representou um prejuízo dramático para o enfrentamento da Covid, porque nessa hora, para obedecer, para que todos fizessem o sacrifício, temos de recorrer às figuras de autoridade. E nessa hora encontramos uma divisão na política sanitária, marcada por uma hesitação e está marcada pela negação do consenso científico”, considera Dunker. “Isso custou a vida de milhares de brasileiros”. diz ele.

Opinião semelhante manifesta o epidemiologista Rômulo Paes. “O Brasil fracassou no combate à pandemia”, sintetiza. “A adesão aos comportamentos de prevenção em relação às doenças depende da forma como as pessoas percebem a pandemia e da forma como se veem nesse contexto”, aponta ele. Se não compreendem a vantagem do isolamento social; se não veem o quanto esse comportamento contribui para a saúde de todos – e nesse sentido é uma atitude empática altruísta e solidária –, não vão aderir às medidas indicadas, acrescenta ele, lembrando que o debate político em torno da pandemia apontou para uma deslegitimação da ciência em alguns momentos e para a falsificação em relação a determinadas terapêuticas. “Essa mensagem conflituosa, desorganizada, atrapalhou muito o entendimento da população sobre quais são os verdadeiros riscos e o que a sociedade como um todo ganharia se fôssemos mais diligentes e solidários nas atitudes de prevenção”, conclui.

Luiz Eduardo Soares (Foto: Mauro Pimentel/Folhapress)

“Nada se distribui igualitariamente no Brasil. Os efeitos letais da pandemia se concentram nas classes subalternas, nos territórios vulneráveis, portanto, são experimentados desigualmente. A empatia é vivida a conta-gotas, homeopaticamente, e se distribui apenas entre os iguais.”
. Luiz Eduardo Soares, cientista político, antropólogo e escritor

O líder indígena Ailton Krenak. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

“Infelizmente, não temos líderes, mas, antes, estão em cargos de comando gerentes sem empatia alguma, que administram linhas de produção, linhas de morte, administram coisas.”
. Ailton Krenak, escritor e ativista

Robson Sávio (Foto: Flávia Cristini/G1)

“Assistimos à descrença na possibilidade da ação do estado, de ações coletivas em prol do bem comum, porque há difuso um sentimento de criminalização da política, do bem público, de criminalização das noções de coletividade, de fraternidade, de associativismo.”
. Robson Sávio, cientista social

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