O Mateus já sabia

Alguém, que não me lembro quem, falou esses dias que “a cada dois anos o Brasil lembra que existe o racismo”. Eu não sei bem em qual parte do ciclo dos dois anos estávamos, mas a pandemia veio certamente para embaralhar essa cronologia.

Eu não me preocupo muito com “os que se lembram a cada dois anos”, me preocupo com os que não podem esquecer, todos os dias. Às vezes a gente finge que esquece, faz umas viagens, um churrasco na laje, come num restaurante caro, compra carro, faz obra na casa da mãe, escreve um livro, planta árvore, coloca o filho na melhor escola particular, faz doutorado.

Quando eu digo que a gente finge que esquece, não é porque o ser negro seja uma coisa ruim, ou que não se queira ser, mas é no mínimo chato lembrar o porquê de ser olhado estranho no aeroporto, ser seguido no supermercado, no restaurante caro só você e o garçom são pretos, o vendedor da loja não querer te atender porque já deduz que você não vai comprar nada, sua produção intelectual ser sempre questionada a priori, na escola do seu filho você não poder ir de branco para não acharem que você é babá.

É no mínimo triste pensar que houve o tempo em que nós fingimos tanto e tão bem, que quase acreditamos. Um dos maiores legados da geração de nomes como Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento foi quebrar a marretadas o mito da democracia racial, não para os que “só se lembram a cada dois anos”, mas até para nós mesmos.

Há um pensamento que ainda não está bem pensado, mas que tenho matutado: a geração do saber é diferente da geração da ação sobre o sabido. Porque a gente sempre sabe, mesmo quando faz a maior força para não saber.

Explico: eu me lembro de um dia, criança, ir com meu pai a Madureira comprar doces para oferecer no dia de Cosme e Damião, tradição na minha família. O segurança de uma das lojas seguiu a gente e eu me lembro do meu pai irritado, falando alguma coisa, e depois saírmos da loja. Foram muitas as situações desse tipo que passei com meu pai, porque ele me levava pra todos os lugares e é óbvio que meu pai sabia o que estava acontecendo, mas ele fingia que esquecia. Eu mesma só fui entender depois, aprendendo depois de uns 20 anos a agir sobre o sabido.

Hoje, eu fico feliz em ver que qualquer jovem preto de 15 anos já sabe agir sobre o que sabe. Inclusive ele muitas vezes primeiro age, depois vai pensar se sabia mesmo o sabido. Geralmente ele sabe, são pouquíssimas as vezes em que erra.

E, como para nós o presente, o passado e o futuro são a mesma coisa, os pais têm aprendido com os filhos a agir sobre o sabido também. Foi a mãe de Matheus Fernandes, de 18 anos, abordado no shopping quando ia trocar um presente de Dia dos Pais, a primeira a dizer que o motivo do filho ter sido agredido era a cor da pele. Não foi preciso dona Alice Fernandes ler Frantz Fanon pra saber, está sabido.

Também não foi preciso para o Mateus Almeida citar “racismo estrutural” para perguntar calmamente: “você trabalhou ou seu pai te deu?”. Está sabido que alguns trabalham e outros não. Que alguns são inclusive passíveis de serem humilhados enquanto trabalham.

Por isso, quando a gente fala em lugar de fala, em quem pode ou não criticar a Beyoncé, não é sobre tirar o poder de ninguém. É sobre valorizar quem sabe o que está sabido, um tipo de saber que não pode ser adquirido em manuais, aquilo que a gente já quase que nasce sabendo. Isso é só uma das milhões de coisas que a gente sabe, mas que só ouvem a cada dois anos.

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