A mulher do país abandonado

É fácil nos perdermos na máscara de excentricidade, consumindo violência racial como entretenimento

“Eu enxergava ela como uma criança grande, sempre. Aí eu cresci. O sonho da minha vida era ter ela comigo sempre e eu não tinha, porque ela não era minha empregada (….) Ela não era nada de escrava. Isso tudo foi inventado. (…) Eu não sei [se ela recebia salário]. (…) Ela era, na verdade, a minha melhor amiga. (…) Ela não era minha amiga de criança? A gente não brincava desde criança? Não mudou nada. Era igual.”

Estas são palavras de Margarida Bonetti, acusada de manter uma mulher negra em condição análoga à escravidão nos EUA. É a personagem escolhida como central por Chico Felitti no podcast da Folha, “A Mulher da Casa Abandonada”. A passagem é tão brutal quanto é elucidativa.

O podcast A Mulher da Casa Abandonada investiga a vida de uma brasileira procurada pelo FBI – Editoria de Arte

Bonetti a infantiliza (“criança grande”); trata-a como propriedade (“ter ela sempre comigo”); e, ao mesmo tempo, domestica a violência (“minha melhor amiga”). Bonetti saiu dos sonhos mais loucos de Freyre: eis a nossa democracia social, onde juntos mantemos cada um no seu lugar, o de mando e o de senzala.

Ao cabo, o que o ótimo, mas novelesco “A Mulher da Casa Abandonada” ensina —mais pelo que sugere, e menos pelo que diz— é que escravidão não é uma falência moral pitoresca; é opressão econômica. Exige desumanização e violência, mas se consolida no controle que se finge dócil.

A Casa Abandonada só existe porque há um país inteiro que fetichiza a fila vip e a casa-grande; há uma cidade que prefere palácios decadentes a democratizar a moradia; que eterniza seus nomes em ruas. Precisa de uma elite para quem todo servente não tem nome nem rosto, é a neguinha. Precisa de um país que não sabe limpar seus próprios banheiros e prefere botar a nação abaixo a compartilhar renda e direitos.

Ao ouvir o podcast, é fácil nos perdermos na máscara espessa de excentricidade, consumindo —como acostumados estamos— violência racial como entretenimento. Por trás do creme que Bonetti, a mulher, usa no rosto, há outra face, a nossa: o rosto de um país abandonado às ditaduras que habitam muros altos.


Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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