A mulher que nem Mandela eclipsou

Comentaristas sublinharam o silêncio no estádio Soccer City, dias atrás, em Johannesburgo, quando Winnie Mandela, de 77 anos, curvou-se diante de Graça Machel, de 68, para lhe dar condolências pela morte de Nelson Mandela, aos 95. O encontro das viúvas titânicas do mesmo homem, o herói sem fronteiras, foi selado por dois beijos na boca, costume africano, e por iniciativa daquela que se curvou.

por LAURA GREENHALGH,

“Mas estas mulheres não se falam”, exclamou uma radialista incrédula, ao vivo. Seria mais uma cena inusitada numa cerimônia com direito a aperto de mão entre Barack Obama e Raúl Castro, autorretrato de governantes pelo celular da primeira-ministra da Dinamarca e um atrapalhado tradutor para surdos-mudos, que jura ter visto anjos no palco.

No entanto, o beijo de Winnie na rival não se explica por ousadia ou deslize de protocolo. Tem-se ali o reconhecimento público de uma grande líder africana: a “mama” Graça, como é chamada não só em Moçambique, onde nasceu, e na África do Sul, onde vive, mas nos países onde sua voz ecoa – Etiópia, Sudão, Índia, entre outros.

Graça Machel casou-se com Mandela em 1998, dois anos depois do turbulento divórcio do líder negro. Uma separação marcada por casos de corrupção, autoritarismo desmedido e infidelidade vindos da parte de Winnie. Já em 2010, quando veio a São Paulo receber o título de doutor honoris causa conferido pela USP a Mandela, Graça anunciaria numa entrevista ao Estado a decisão de fechar sua agenda para compromissos externos, terminar com a ponte aérea semanal entre Maputo e Johannesburgo (fica na capital de Moçambique a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, que ela criou e preside), só para se dedicar a Madiba. “Meu marido está com 92 anos. Tem todo o conforto de que necessita. Nada lhe falta. Mas ele me quer a seu lado”, disse.

Discreta quanto à vida privada, não se negou a explicar como e quando o romance começou. Viúva do presidente moçambicano Samora Machel, morto em 1986 num suspeito acidente de avião em espaço aéreo sul-africano, Graça Machel procurou o presidente Mandela para cobrar dele empenho nas investigações. “Era o décimo aniversário da morte de Samora e não se avançava na investigação sobre o envolvimento de elementos ligados ao apartheid. Madiba ouviu, acolheu minha revolta e assim tudo começou”, contou. Teria sido amor à primeira vista? “Creio que estávamos, ambos, muito sozinhos naquele momento”. A partir daí, o que se viu foi um Mandela feliz, exaltando “a maravilha de estar apaixonado”.

Mas a personalidade solar do líder não eclipsou Graça Simbine Machel. Nem a transformou em peça de cerimonial. “Conheci Graça por intermédio de Ruth Cardoso. Eram amigas, Graça queria Ruth como irmã. Em comum, tinham a capacidade de se reinventar, ao mesmo tempo em que reinventavam o papel de primeira-dama”, analisa a cientista política Lourdes Sola. E assim foi: mulher de dois presidentes, primeira-dama em dois países, comprometida com o fim do colonialismo, Graça desembarcou na África do Sul dos anos 90 já a bordo de uma sólida biografia pessoal. Nascida em família pobre e numerosa, estudou com apoio de organizações religiosas até doutorar-se em filologia da língua alemã pela Universidade de Lisboa. Fez-se poliglota.

Voltaria à pátria para atuar na Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, incluindo a fase das armas. Independência conquistada, foi por 14 anos a primeira ministra da Educação de um país livre, mas com índice de analfabetismo de 93%.

O pan-africanismo é marca de seu pensamento e ação. “Depois de décadas lidando com a ruptura do colonialismo, só agora as nações africanas começam a definir seu destino”, avalia. Graça saltou do front político para o ativismo social, no campo dos direitos humanos, tendo a sabedoria de atualizar as suas causas. Por exemplo, em Darfur, jogou o peso de sua influência ao denunciar a violência de gênero, em particular o estupro de mulheres e meninas. Em países como Etiópia e Índia, enfrentou tradições culturais arraigadas ao condenar o casamento imposto a crianças, como prática natural e socialmente aceita. “Tira-se a menina da escola, isolam-na grávida em casa, não lhe dão serviços médicos adequados. É devastador”.

Outro momento de alta performance de Graça acontece nos anos 90, quando a ONU a convoca para conduzir um amplo levantamento sobre a situação da infância em zonas de conflito. Liderou um batalhão de especialistas ao compor o célebre Relatório Machel, numa época em que havia perto de 30 conflitos armados em curso. Denunciou a morte de 2 milhões de crianças no espaço de uma década. O triplo em termos de portadores de sequelas. Tratou do problema em todos os seus vieses: crianças como alvo preferencial em combates, recrutadas como soldados, aliciadas para a prostituição, amputadas em minas terrestres, órfãs, sem lar nem escola. “É impressionante. Já pude vê-la em fóruns com personalidades incríveis. Assim que Graça começa a falar, vê-se que está num nível superior de inteligência, carisma e clareza”, declarou recentemente John Carlin, biógrafo de Mandela.

“Não é a origem social que determina o que és, nem o que virás a ser”, costuma repetir a ex-ministra da Educação que sonhava transformar um país numa grande escola. Semanas antes de o marido morrer, extenuada com o lento definhar e com o clima de disputa entre os Mandelas, meteu-se numa videoconferência de Johannesburgo, para dar um puxão de orelhas no presidente de seu país. Cobrou medidas para conter a onda de sequestros de crianças, algo que atemoriza a sociedade moçambicana. “Ela se manteve à frente de tudo nesse período difícil”, comentou o advogado George Bizos, companheiro de Mandela na luta contra o apartheid. Assessores de Graça acreditam que, daqui para frente, ela vai se voltar ainda mais para o social. A política não a seduz. O ativismo, sim.

Josina, uma das filhas com Samora Machel, faz outra previsão: Graça deve se recolher, para elaborar a perda do homem que lhe deu toda a beleza de um amor crepuscular: “Hoje o que ela sente é dor”.

 

 

Fonte: Estadão

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