A nação afro-brasileira

Memória – Entrevista com Clóvis Moura (1981)

A entrevista concedida a Revista Movimento da União Nacional dos Estudantes, em 1981, continua atual e é uma fonte de reflexão crítica a todos os que estão engajados na luta contra o racismo e o neoliberalismo.

A história do Brasil aos poucos vem sendo contada de acordo com os pontos de vista de seu verdadeiro protagonista: o povo brasileiro.

 

Falamos em História e falamos em Brasil. Porém, conhecemos mesmo a evolução de nosso país? A formação da nação Brasileira? Em verdade nosso repertório de informações é pequeno e deformado. E seria difícil que não fosse assim, pois afinal as interpretações oficiais e dominantes tentam apagar o papel decisivo das lutas populares na construção daquilo que somos hoje e do que poderemos ser.

 

Clóvis Moura nos dá uma aula de História, de honestidade intelectual, de rigor científico e principalmente de compromisso apaixonado com as causas populares, ao falar sobre a cultura afro-brasileira e de questões intrigantes como o racismo no Brasil.

 

Com esta entrevista concedida a Jvier Alfaya (Secretário de Cultura da UNE), Clóvis Moura dá a contribuição inicial para uma série de grandes entrevistas,abordando temas chaves para o entendimento de nossa realidade e do processo de sua transformação.

 

RM – No Brasil, nós poderíamos falar que existe uma cultura negra ou, como você usou na sua expressão, uma cultura afro-brasileira? Como é que isso surgiu e evoluiu até nossos dias?

 

CLÓVIS – Bem, eu falo que nós temos uma cultura afro-brasileira porque os negros do Brasil já praticamente criaram uma nação. Foram desarticulados do ponto de vista das diversas nações africanas e hoje constituem uma parte – a mais importante – da nação brasileira. Mas uma grande herança das culturas africanas continua, e por isso nós achamos que, de fato, nós temos uma cultura afro-brasileira.

Os negros falam português, assimilaram também uma série de elementos de outras culturas que foram trazidas para o Brasil. Daí nós termos esse amálgama que chamamos de cultura afro-brasileira. Uma cultura preponderantemente africana, porque os valores, uma série de particularidades foram trazidas pelos negros da África, embora os padrões de comportamento sejam mais ou menos europeus. Nós vemos isso através da nossa história. Até o século XIX, os negros eram a maioria da população. Eles não eram apenas objetos de trabalho. Eram seres humanos que traziam uma cultura, muitas vezes altamente desenvolvida, refinada, que o colonizador na África destruiu em grande parte. Exemplo disso são os reinos de Songay, Benin, Malí, que foram praticamente destruídos pelos árabes. Mas os negros trouxeram para o Brasil suas religiões, sua música, seus hábitos de família, etc. Isso mostra a força e a vitalidade daquelas culturas, que conseguiram sobreviver apesar do sistema escravista. Uma das características da escravidão no Brasil é que ela foi nacional, espalhou-se por toda a superfície geográfica do país. E os negros conseguiram criar esse ethos nacional, a partir desses padrões trazidos da África.

 

Hoje em dia, se nós pegarmos o português falado no Brasil, encontraremos uma quantidade enorme de palavras de origem africana. O vocabulário se incorporou à estrutura da língua portuguesa. Quer dizer, não houve a possibilidade das línguas africanas quebrarem a estrutura do português, mas enriqueceram essa estrutura com seu vocabulário.

Mesmo a forma de se falar hoje no Brasil é inteiramente diferente da que se fala em Portugal. Essa diferenciação se deve exatamente à injeção das línguas africanas que se incorporaram ao nosso falar coloquial e também à própria língua erudita, a língua literária.

 

Em cima da grande quantidade de africanos trazidos, nós tivemos uma elite branca colonizadora. Essa elite branca impunha, através da violência, não só o seu aparelho de dominação, mas também um aparelho ideológico que explicava porque o negro era trazido como escravo. Então o negro não era humano, era inferior, se aproximava dos animais, etc.

 

RM – Aproveitando essa colocação sua sobre o aparelho ideológico, gostaríamos de saber quais as visões que se desenvolveram acerca da influencia do negro em nosso país. Evidentemente, cada setor de classe, cada grupo dentro da sociedade, interpreta a história segundo seus interesses e sua forma de ver. Quais são então as grandes linhas mestras do pensamento brasileiro que interpretam, e como interpretam, a cultura afro-brasileira?

CLÓVIS – Bom, como eu estava falando, o colonizador tinha que ter os elementos que justificassem a missão colonizadora, a missão de rapina na África. Para isso foi necessário criar ideólogos, e surgiu no Brasil uma intelectualidade racista, que não aceita o negro como igual ao branco. Os nossos melhores pensadores, como Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Tobias Barreto, todos eles mostravam como um dos fatores de atraso no Brasil não a escravidão, mas o negro. Eles criaram um filão de pensamento que vem até os nossos dias. Nós temos um Oliveira Viana, um Gilberto Freire, sendo que este aparentemente tem uma obra democrática, anti-racista, mas que no fundo é uma obra que justifica a escravidão. Gilberto Freire criou uma teoria através da qual o senhor é bondoso e o escravo dócil, e com isso ele neutraliza a existência da luta de classes durante o regime escravista. É o patriarcalismo de um lado, e do outro a docilidade do escravo, porque o escravo era negro. Vem então aquela tese de que o negro só quer cachaça, só quer dançar e, atualmente, só quer jogar futebol. Não se apresenta o negro como transmissor de cultura, elemento de trabalho e também de revolta. Esconde-se da História do Brasil todo o problema de conflito durante a escravidão. Por aí nós vemos como nossa história é fraturada. Chega um momento em que a história oficial pula um capítulo como Palmares. São 100 anos de história apresentados nos compêndios em 5, 8, 10 linhas, sem se fazer uma análise do que foi Palmares. E outras revoltas de escravos que são poucas estudadas, como as revoltas urbanas de Salvador, no século XIX.

O Brasil nunca foi um país que não sofresse uma dominação externa. Quando nós saímos do sistema colonial, entramos já na dominação do imperialismo. Aí começamos pelos ingleses e agora estamos nas mãos dos americanos. O imperialismo pegou os símbolos que vieram da escravidão, e surge um Oliveira Viana e remanipula nossa história, mostrando que somos um povo atrasado, porque somos mestiços. Precisamos então de que nos civilizem. Tudo isso leva a que se crie no subconsciente do brasileiro o racismo, que nós chamamos eufemisticamente de preconceito de cor. Todo brasileiro é, na sua essência, em maior ou menor grau, preconceituosos, e o centro desse preconceito é exatamente o negro.

Se você pegar o folclore brasileiro, verá que ele é todo impregnado de símbolos que refletem preconceitos contra o negro. O cordel, por exemplo, trata o negro segundo a ideologia do colonizador. Eu tenho um livro publicado sobre o preconceito de cor na literatura de cordel. Excluídos alguns autores que usam o cordel politicamente, o cordel espontâneo é de fato reacionário em relação ao negro, à mulher e ao cego. O negro é confundido com o cão, com o diabo. E não só o cordel. Você pega a literatura brasileira, e o negro raramente entra como personagem. O negro começou a entrar como personagem que pensa, que tem interioridade, a partir da literatura de 30. Nós vamos encontrar com Jorge Amado (Jubiabá), com José Lins do Rêgo (Moleque Ricardo). Mas são tipos criados mais na base do exótico. O negro que é praticamente a população brasileira na sua estrutura básica, é colocado como se fosse uma coisa exótica dentro da nação brasileira.

 

Ele é sempre visto como objeto da ciência, que a gente tem que estudar para poder dar um remédio para curar. Na SBPC foi isso. O negro é tido como o exótico, o diferente, mas ele não é o deferente. O diferente no Brasil é o branco, que é a minoria insignificante. Nós temos uma minoria branca dominante e uma grande massa de negros e pardos. Mas quando se criou um tipo ideal de nação brasileira, ao invés de se escolher esse tipo que é exatamente a realidade, se idealizou o branco como superior e representativo. No Brasil, todo mundo quer ser branco. Como dizia Lima Barreto, “é triste não ser branco no Brasil”. Porque mesmo o branco pobre é privilegiado em relação ao negro pobre.

 

Aí entra o somatório entre classe e raça. Evidentemente, quando os negros estão nessa situação, em que há em cima da nação uma ideologia do colonizador em que os brancos, mesmo sendo pobres, têm preconceito contra o negro, a coisa fica muito difícil. O negro passou por uma lavagem cultural de 400 anos de escravidão. Quando começa a tomar consciência, a primeira consciência que ele quer tomar é a consciência étnica, quer se sentir como ser. Porque o negro no Brasil, quando não tem consciência, quer sair de dentro dele, porque é negro; quer sair de sua cor. Ele precisa ter consciência étnica, ter orgulho de sua cor e se convencer de que não é inferior por ser negro.

 

Essa primeira fase é a que está acontecendo no Brasil agora. A primeira vez que isso aconteceu foi em 36, 27, com a Frente Negra, que foi fechada por Getúlio Vargas, porque todos os movimentos negros são perseguidos no Brasil. Todos podem se organizar, menos os negros. A religião negra é o candomblé, perseguida pela polícia. Se o negro anda depressa, o guarda manda parar para saber se correu da polícia.

É porque roubou alguma coisa. Esse preconceito existe em camadas muito extensas. Na família, por exemplo, o problema é sério. Todo mundo tem um discurso democrático, mas na hora que aparece um fato concreto de um negro querer casar com a filha branca, desaba tudo. O preconceito é substituído por um julgamento subjetivo, do tipo: “não é porque é preto não, é porque ele é comunista”, ou “é cachaceiro”, ou “joga futebol”. Qualquer coisa serve para justificar, sem enfrentar a realidade.

 

Mas na medida em que o negro se reeduca, ele reeduca o branco também. Ele reeduca o branco pelo seu comportamento, porque ele vai também disputar os espaços. Isso é a primeira etapa. Mas na medida em que o negro luta no sentido de uma consciência étnica, sente que as barragens não são apenas ideológicas, mas estruturais. O negro vem de um processo de colonização centenária que o coloca, coincidentemente, como negro e como o segmento mais explorado na sociedade brasileira. E ele, como o mais explorado, começa a tomar consciência dessa exploração.

 

O problema é esse. O negro brasileiro está nesta etapa e, evidentemente, você não vai querer que tudo esteja certo. O negro foi desarticulado durante a escravidão, desarticulado no grupo-família, foi todo fragmentado. As línguas também foram desarticuladas, os grupos étnicos foram redistribuídos, exatamente para que não houvesse hegemonia de língua, através do qual poderia se comunicar facilmente para fazer revoltas. O colonizador tentou desarticular todas as culturas negras. Agora, quando o negro está tentando se reorganizar de tal forma que começa a ser visto, exige-se um comportamento como se ele tivesse condições de ter elaborado uma ideologia perfeita, para colocar agora em função de suas lutas. Mas o direito de errar é o início da ação social, da ação política. É você começar a elaborar uma ideologia a partir de uma prática, senão você tem uma visão idealista do processo. O negro começa a organizar-se às vezes através de uma revalorização das culturas africanas, através do penteado, através da indumentária. Começa a se vestir como africano. Não se percebe que isso é uma volta a memória ancestral.

Ele está se sentindo de novo um homem com passado, porque nem nome os negros tinham. Eu estava conversando com uma moça descendente de japonês, e ela me deu o seu cartão e lá estava o sobrenome dela em japonês. Eu disse que nenhum negro no Brasil tem isso porque os nomes de origem dos negros foram tirados e colocava-se o nome do senhor. O escravo sequer sabe a sua ancestralidade africana. “Você sabe a tua família no Japão?” Ela disse – “sei”. Mas os negros daqui não sabem, por isso é que sempre o negro idealizou a África como pátria, porque tiraram a territorialidade do negro. Ele tinha que criar uma territorialidade utópica. Todos os movimentos negros tinham, no fundo, a utopia de voltar à África. Você pode ser no folclore. Sempre a referência a Luanda, que eles chamam Aruanda. É exatamente a volta à África, embora seja uma volta simbólica, que eles idealizam, a África de há 400 anos, aquela África antiga. Os movimentos de libertação da África também foram um componente que trouxe aos negros do mundo inteiro a confiança que eles também poderiam se libertar. A partir dos movimentos de libertação da África, nós sentimos no mundo inteiro a maior participação social e a dimensão psicológica e política do negro. Isto é incontestável.

 

Mas, como eu estava dizendo, exige-se que o negro tenha uma ideologia pré-fabricada, toda certinha, para se aplicar do jeito que o dominador acha certo. Por exemplo, nunca os negros no Brasil, quando fizeram movimentos políticos, foram julgados como prisioneiros políticos, mas sempre como criminosos.

É um problema interessante. Desde Zumbi dos Palmares até João Cândido da revolta da Esquadra, todos foram julgados como criminosos. Não se dá ao negro sequer o direito de ser julgado como criminoso político. Porque ele é um animal, em ex-escravo que se levantou contra a sociedade. Um ingrato, um agressivo. Não é um revoltado contra um sistema iníquo de dominação.

 

Hoje em dia, quando o negro se veste à semelhança dos africanos, é de fato uma agressividade simbólica, da qual ele lança mão para se auto-afirmar perante os valores da sociedade, que ele sente que está repelido. Quando eles começam a fazer um penteado black-power, é uma coisa natural deles. Porque o black-power é praticamente o tipo de cabelo do negro no seu natural. Eu tenho retratos feitos por Martius, do século XIX, de negros brasileiros, e tenho também de Biard, um pintor francês, nos quais eles estão com cabelo black-power, porque o cabelo do negro crescendo tem aquela conformação. Agora nós dizemos que é o negro queremos se exibir, etc.

 

Vemos o despertar de uma consciência negra, principalmente na classe média, que não irá resolver o problema do negro, mas irá dar consciência a uma parcela dos negros brasileiros, porque outro aspecto que temos de ver é que o problema do negro no Brasil não está numa classe média negra, mas está na grande massa negra marginalizada, que esse sistema marginaliza progressivamente. Não dá a possibilidade de ascensão massiva do negro no Brasil; o problema do negro no Brasil está nas fazendas de algodão no Maranhão, onde ele vive praticamente numa economia de miséria; está nas fazendas de cacau da Bahia; está nos engenhos de cana de Pernambuco, está exatamente nessa massa marginalizada de negros, que vive numa economia de miséria secular, sem conseguir mudar um milímetro para melhor a situação de pai para filho.

 

Então o problema do negro tem duas etapas, a meu ver. A primeira é a atual. A segunda etapa é a das lutas dos negros, que constitui a massa brasileira, juntamente com curibocas, com mamelucos, com todos os explorados, inclusive com todos os brancos pobres também, para se desestruturar e quebrar esse modelo de sociedade brasileira. Essa segunda etapa é de fato a etapa revolucionaria, que o negro tem que assumir.

 

RM – A gente percebe em alguns movimentos negros, principalmente no Rio de Janeiro e em Salvador, uma certa influência dos grupos negros dos Estados Unidos. Como é essa influência? Qual a sua opinião sobre os movimentos que existem nos Estados Unidos?

CLÓVIS – O problema da influencia dos grupos negros aqui no Brasil, pode se ver de duas formas. Uma é a influencia que vem das trocas de experiências, de informações. E a outra é o grupo negro brasileiro manipulado por grupos norte-americanos para ser explorado. Um exemplo: quando surgiu no Brasil aquela moda “soul”, aquela música, era típica exploração. Eram exatamente companhias de gravadoras norte-americanas que faturavam milhões em cima daquilo.

Agora, tem outras formas de comunicação que são espontâneas. Mas me parece que os negros brasileiros têm mais uma visão simbólica dos movimentos negros americanos, inclusive sabem poucos detalhes deles. Eles conhecem os grandes lideres da década de 60, 70, como Malchon X, Luter King, que morreram quase todos assassinados. Inclusive houve também um descenso no movimento negro dos Estados Unidos. A gente vê o negro daquele país sendo massa de manobra eleitoral, ou lideranças negras moderadas que vendem praticamente o voto negro pra um dos partidos, Republicano ou Democrata. De forma que eu acho que a massa negra que está participando desses movimentos no Brasil conhece pouco dos movimentos negros americanos. Os movimentos de independência africanos são mais influentes agora. Por exemplo, houve uma grande repercussão no seio negro a libertação de Angola e Moçambique. É que os negros se sentem muito mais identificados com a áfrica do que com os EUA.

 

RM – Bem,agora nós gostaríamos que você falasse um pouco sobre as áreas da vida brasileira onde a cultura afro-brasileira está mais presente, mais viva.

CLÓVIS – Do ponto de vista da cultura afro-brasileira, me parece que é na Bahia (Salvador e Recôncavo) que ela se faz mais notar. Agora, do ponto de vista político, me parece que onde o movimento negro está mais desenvolvido é São Paulo e Rio. Mas do ponto de vista cultural, Salvador é uma cidade negra e com grandes traços de cultura ainda africanos, como o candomblé. Em cima disso, os movimentos negros estão começando a trabalhar em Salvador, revitalizando esses traços de cultura estavam já sendo manipulados pelos dominadores. Os afroxés, agora, estão praticamente nas mãos dos movimentos negros em Salvador. Já está criando dificuldades para o governador penetrar neles para utiliza-los politicamente. As organizações negras sempre fizeram isso: a estrutura dominante, quando não pode esmagar, penetra para corromper.

 

Agora, politicamente, a atividade negra em São Paulo me parece a mais consciente. Já deu inclusive formas de protestos, quando foi fundado o próprio Movimento Negro Unificado. Foi nas escadarias do Teatro Municipal, com um ato de protesto que juntou quase quatro mil pessoas, na sua maioria negras. Parece-me que em São Paulo, do ponto de vista político, é onde o movimento negro está mais bem organizado, mas bem entrosado. Salvador era para ter um movimento negro já com um caráter pré-revolucionário, porque lá se concentra a miséria do negro e é onde há uma tradição de luta durante a escravidão, uma tradição de luta urbana, que foi uma luta violenta. Deveria ser Salvador exatamente o local onde o movimento negro politicamente estaria mais evoluído, mas não está. Tem toda uma serie de organizações que são afro-brasileiras e estão se deteriorando, porque há penetração de forças de fora, como é o caso do candomblé, que se transformou em grande parte uma simples manipulação pra turista ver. Nós vimos outro dia, no “Fantástico”, aparecer um candomblé de Eguns, que é um culto altamente secreto. Apareceu.

Conversei com o mestre Didi, de Salvador, e ele disse que protestou. Ele me mostrou um recorte de jornal com seu protesto e me disse que o Tv Globo pagou Cr$ 70 mil para filmar.


RN –
Em quais ramos da atividade humana a cultura afro-brasileira é mais presente?

CLÓVIS – Bom, mais visível é a música, porque os povos africanos são povos altamente musicais. E na dança também. Você vê o seguinte: quando vemos uma mulata e uma negra andando, achamos que elas são sensuais, que aquilo é uma exibição de sexo, não é.

O negro da África anda gingando. Aquilo faz parte da expressão cultural, de cultura dionisíaca, de onde não houve a repressão da Idade Média e nem do capitalismo. Nós somos povos altamente reprimidos, e o nosso corpo é tido até hoje em dia como uma coisa que tem que ser encoberta, meio pecaminosa. É a herança da Idade Média.

 

Também na língua há uma grande influência negra. Nós temos uma neo-língua portuguesa, enriquecida pelo vocabulário e pelo modo de falar também. Essa diferenciação do português de Portugal para o brasileiro deve-se à influência africana. É assim no modo de vestir, na culinária, na medicina popular. O problema da agricultura, das épocas de plantio, através da Lua, técnicas de regadio, tudo isso é influência dos negros africanos.

 

RN – Está bom. Então vamos encerrar fazendo um painel sobre os homens e as mulheres negras do Brasil. Lideranças populares, grandes figuras…

 

CLÓVIS – Eu não gosto disso, porque eu posso esquecer, fazer certas injustiças. Mas nós teríamos que rever toda História do Brasil. Por exemplo, nos compêndios de História deveriam constar como heróis Zumbi, Pacífico Licutã (um dos heróis da revolução de 1835), Elesbão Dandará (também líder dessa revolta), Luís Sanin, Luísa Mahin (mãe de Luís Gama). Esses são heróis que não entraram na nossa história. Os inconfidentes baianos de 1798 também. Alguns conseguiram entrar na história, como Luís Gama, o grande abolicionista revolucionário, que defendeu a tese de que o escravo que mata seu senhor pratica um ato de legítima defesa. Isso ele falou num tribunal de júri, defendendo um escravo. Temos João Cândido, um herói da plebe; Lima Barreto, escritor. Temos um Henrique Dias, que não é um herói, mas um agente da História. Porque Henrique Dias, apesar de negro, combateu quilombos. Temos um herói como Preto Cosme, que até hoje é considerado um paranóico nos compêndios de História. E há outros que não foram heróis, como José do Patrocínio, um aproveitador do movimento abolicionista, ou André Rebouças, que foi um negro abolicionista mais contraditório, já que era monarquista. Parece-me que aquele negro condenado à morte, do qual ninguém sabe o nome, e que foi chamado para enforcar Frei Caneca, em troca de indulto e recusou, para mim é um herói, temos que coloca-lo na História do Brasil. E aí está o problema. Porque na medida em que se refaz a História, você também modifica a ideologia da comunidade negra.

Existe uma História que não é contada, e nela estão os heróis que temos de mostrar que existem. Nós temos necessidade de rever essa História e recolocar no seu devido lugar os heróis da plebe. Não é pegar o Pelé e mostrar que ele foi um traidor do movimento negro. Não é endeusar o Pelé porque ele é negro. Mas mostrar que o Pelé serve exatamente para fazer uma lavagem cerebral numa série de elementos da comunidade negra.

 

Eu acho que nós temos que rever os nossos heróis. Os heróis de 1835 na Bahia, da Revolta dos Alfaiates, da Cabanagem, da Balaiada, o Preto Cosme… Não precisamos de generais negros, de diplomatas negros, para dizer – “está vendo, o negro chegou lá em cima”. Não é isso. Nós temos que continuar junto com a massa oprimida. Os heróis que vamos forjar são os que partem para liderança dessa massa.

 

Clóvis Moura é sociólogo, escritor, ex-secretário geral da União Brasileira de Escritores, presidente da Associação de Estudos Afro-Brasileiros. Autor de “Rebeliões na Senzala”, “Sociologia posta em questão” entre outros.

 

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