A onça

Conto

Karina esfrega as mãos. A água fria toca a pele confirmando parte de uma presença. O rosto no espelho reflete encontro e estranheza com a outra de si mesma. As manchas pretas estão por toda face. Simula um sorriso e os caninos saltam da boca. A cara de onça veio pra ficar.

O primeiro sinal do animal aconteceu quando Karina tinha sete anos. Gritaram na escola:

– Karina cara de macaca!

A menina voltou para casa acabrunhada. Na manhã seguinte da desfeita, acordou com uma mancha na testa mais preta que o tom de sua pele. Zelosa, a mãe levou a filha em tudo quanto foi médico. A ciência não encontrou remédio. No terreiro de mãe Joaquina, o caboclo falou:

-A menina carrega a mata no corpo. Não há de ser coisa ruim, mas é preciso proteger.

Mistério a gente não contesta. Mesmo sem entender a mensagem do Sete Flechas, a mãe banhou a criança com as ervas recomendadas. Uma folha para cada dia da semana. A mancha não sumiu, nem aumentou.

Depois de vinte anos convivendo com a marca, Karina até esqueceu que não nascera com ela. Agora, quando a felina voltou a se manifestar, a jovem aceitou de vez que a onça faz parte da sua natureza. Ela achou bonito quando os olhos ficaram verde amarelados.

-Pareço com vó Zeferina, disse referindo-se à ancestral de pele azulada e olhos verdes.

As pintas negras espalharam-se apressadas pela face. Os longos pêlos perto da boca chegaram por último. Karina tentou arrancá-los. Pinça, creme, cera quente. Foi inútil. Tirava os fios à noite e um punhado renascia pela manhã. Por fim, achou a cara nova mais bonita que a antiga. O inconveniente é a necessidade de escondê-la.

No trabalho usa a câmera desligada. Mas desde a última reunião já não pode mais falar. Durante o brainstorming, alguém fez de conta que não ouviu a ideia sugerida por Karina. Quando foi denunciar o desaforo, a voz humana saiu misturada com os timbres da felina. Karina, intuindo que a onça reivindicava a palavra, continuou o reclamo pelo chat. Ufa! Escapou por pouco. É arriscado rugir do centro sendo margem.

Na luz do dia, por precaução, Karina-onça só aparece com máscara, maquiagem e óculos escuros. Outro dia foi ao mercado com olhos descobertos e camadas e mais camadas de pó facial. O artifício não foi suficiente para camuflar a pantera. Na fila, uma mulher gritou:

– Por que tá me olhando desse jeito?

A visão fixa na nuca da mulher. As pupilas se dilatam. Na mandíbula alongada, a boca enche de saliva. Os músculos dos braços e das pernas se contraem. A onça esturra tão forte que, lá distante, o Sete Flechas foi capaz de ouvir.

*********
Esse texto é fruto de conversas partilhadas, sugestões e revisões de Aaron Jaekel, Anderson de Souza, Camila Matheus da Silva, Cesar Augusto Mendes Cruz, Daniela Vieira, Márcia Cristina Rogério de Almeida, Mayara Almeida do Nascimento e Terra Johari

+ sobre o tema

Polícia que mata muito demonstra incompetência de governos de SP, RJ e BA

Ninguém em sã consciência espera que um policial lance...

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Eu, mulher negra…

EU, MULHER NEGRA…Eu, mulher negra…Tenho orgulho de quem sou...

para lembrar

Presidente eleito da Costa Rica apresenta gabinete com maioria de mulheres

San José, 26 abr (EFE).- O presidente eleito da...

Mulheres ainda se dividem entre a casa e o trabalho, aponta o IBGE

Mesmo cada vez mais inseridas no mercado de trabalho,...

Elas vão juntas: cinco candidatas e um único número na urna

Elas têm trajetórias de vida bem diferentes, algumas nem...

Mulheres agredidas por PM serão indenizadas no Rio

Ele as xingou, atacou com cabo de vassoura e...
spot_imgspot_img

Vamos a desprincesar! Reflexões sobre o ensino de história à partir da presença de María Remedios del Valle na coleção Antiprincesas

Lançada em 2015 em meio à profusão de movimentos feministas, a coleção de livros infantis Antiprincesas da editora argentina independente Chirimbote se tornou um...

O atraso do atraso

A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em...

Homens ganhavam, em 2021, 16,3% a mais que mulheres, diz pesquisa

Os homens eram maioria entre os empregados por empresas e também tinham uma média salarial 16,3% maior que as mulheres em 2021, indica a...
-+=