Há duas décadas atuando em Taboão da Serra, na periferia de São Paulo, o Grupo Clariô de Teatro lançou, na terça-feira (3), o documentário 20 anos vingando em Taboão: o manifesto teimoso de um teatro afro-periférico-popular , um mini doc sobre memória, resistência e futuro, celebrando o aniversário do coletivo.
A produção audiovisual é dirigida pela também atriz, cantora e compositora premiada Naruna Costa, uma das fundadoras do projeto que busca fortalecer as narrativas negras e periféricas por meio da cultura.
“Além de termos conquistas enquanto coletivo de teatro — que vêm do ofício, como espetáculos que foram premiados, viajaram o Brasil e têm força artística e cultural —, também temos um lugar de ativismo e de luta que mudou o cenário daquela região e fez com que a juventude tivesse uma experiência que nós não tivemos”, comemora Costa, em entrevista ao Conversa Bem Viver.
A atriz avalia como a trajetória do Clariô ajuda a desmontar o mito de que a população periférica brasileira não se interessa por arte ou literatura. Para ela, o que falta, na verdade, é investimento em políticas públicas que ampliem o acesso desse público às produções.
“Não representa a nossa quebrada a falta de interesse pelas artes, mas sim a falta de políticas públicas que permitam o acesso às artes de uma maneira mais livre. O que o movimento de cultura periférica faz é criar brechas e espaço para que esse acesso seja permitido, para além da cultura de vida das pessoas. Quando isso acontece, passa a ser uma atividade cada vez mais efervescente”, explica.
Costa também é enfática ao afirmar que existe nas cidades brasileiras, principalmente nas governadas por políticos conservadores, um movimento intencional de precarização e ataques ao setor cultural.
“Existe uma lógica de entender o teatro e as artes como uma ameaça para governos conservadores. Existe um movimento de fazer com que as pessoas tenham cada vez menos acesso às artes e à cultura e, com isso, menos acesso à informação e ao fortalecimento das suas identidades para lutar pelas suas necessidades”, afirma.
A atriz também comenta sobre o filme Dolores, dirigido por Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar, que estreia no Brasil no próximo fim de semana, no Festival do Rio. Assim como Zezé Motta, ela faz parte do elenco.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Qual é a sensação de ver o Grupo Clariô completando mais um ano de existência?
Naruna Costa – São 20 anos de muito ativismo. Quando começamos, lá em 2005, abrimos esse espaço de teatro que, a princípio, era para ser uma sede para esse coletivo de periferia, onde pudéssemos fazer os nossos cenários, pensar os espetáculos, etc. Entendemos que a nossa geografia precisa de espaços como esse para fomentar o pensamento cultural.
É engraçado, porque, quando surgiu o Clariô, também estava se fortalecendo um movimento muito importante, que é o movimento de cultura periférica, especialmente o movimento de saraus nas periferias. Tinham também muitos slams e espetáculos de quintais começando a surgir. Fomos fortalecidos por esse movimento também. Entendíamos que havia algo acontecendo aqui, que estava começando a nascer algo nessa geografia.
Daí pensamos: “e se, ao invés de termos um espaço para ensaiar e levar para fora, nos aprofundarmos na estética desse território e invertermos a lógica, fazendo com que outras pessoas atravessem a ponte para chegar até aqui?”.
Esse foi um sonho primordial de uma turma muito jovem e de uma outra turma mais madura, que infelizmente já partiu, fora do combinado, como Mário Pazini Júnior, nosso diretor, e Will Damas, que nos ajudaram e nos incentivaram a dar esse pontapé inicial.
Foi muito bonito, um projeto de muita identidade. Realmente queríamos fazer um teatro que desse conta de pelo menos atiçar um pouco as experiências de narrativas da quebrada, o que, na época, não era tão comum.
Acho que o Clariô também incentivou e inspirou muitos outros coletivos a fazer pesquisas que atravessassem a periferia, que atravessassem narrativas de pessoas periféricas, de pessoas pretas, do teatro negro.
Então eu celebro muito por tudo isso. Acho que, além de termos conquistas enquanto coletivo de teatro — que vêm do ofício, como espetáculos que foram premiados, viajaram o Brasil e têm força artística e cultural —, também temos um lugar de ativismo e de luta que mudou o cenário daquela região e fez com que a juventude tivesse uma experiência que nós não tivemos. É maravilhoso poder visitar um teatro perto de casa, conhecer teatro, conhecer a literatura, conhecer as artes e todo movimento que a gente faz naquela casa, na Rua Santa Luzia, em Taboão da Serra.
Existe um estigma de que a população das periferias não consome arte. Qual é a importância de ter equipamentos de cultura nesses territórios?
A questão de a periferia não acessar ou não ter o direito ao acesso às artes é algo que simula uma experiência. Porque, primeiro, a periferia é muito forte culturalmente. Eu sempre digo que a escassez não passa pela experiência cultural. Especialmente em São Paulo, a periferia é recheada de pessoas de todo o país, que carregam culturas diversas, que trazem experiências de convívio de comunidades muito diferentes, de culinárias diferentes, de culturas ativas que foram transmitidas de forma oral e que se somam na periferia.
Eu acho que Taboão da Serra contempla um pouco essa geografia da periferia da região sul de São Paulo, que tem essa força cultural. Mas existe uma política muito forte de extermínio e de escassez das experiências artísticas para essa população. Não temos direito ao acesso. Quero dizer, deveríamos ter esse direito, mas não temos acesso às artes, à produção artística de teatro, de música, de literatura, etc.
O que o movimento de cultura periférica faz é criar brechas e espaço para que esse acesso seja permitido, para além da cultura de vida das pessoas. Quando isso acontece, passa a ser uma atividade cada vez mais efervescente.
No último final de semana, por exemplo, celebramos de novo a Felizs, que é a Feira Literária da Zona Sul, um movimento intenso que existe aqui na região. Realmente, não representa a nossa quebrada a falta de interesse pelas artes, mas sim a falta de políticas públicas que permitam o acesso às artes de uma maneira mais livre.
Até o sistema educacional traz a experiência artística de uma forma muito precária. As pessoas são obrigadas a lerem determinados livros e a experiência com as artes é muito em função das provas ou do que o governo ou a escola determinou, e não a partir das necessidades daquelas pessoas. O movimento de cultura periférica rompe com isso, compreende e adere à experiência da periferia, daquela população.
Existe uma mobilização em São Paulo pela manutenção do Teatro de Contêiner, em resposta à tentativa da prefeitura de tirá-lo do centro da cidade. Qual é a relevância de termos espaços que trazem a cultura periférica também em áreas centrais?
Espaços como o Teatro de Contêiner, o Teatro Contadores de Mentira , o Teatro Ventoforte e o próprio Teatro Oficina, apesar de não serem espaços públicos, têm uma experiência pública de acesso à cultura.
Eles são precarizados, porque existe uma lógica de entender o teatro e as artes como uma ameaça para governos conservadores e porque eles cresceram muito nos últimos anos. Existe um movimento de fazer com que as pessoas tenham cada vez menos acesso às artes e à cultura e, com isso, menos acesso à informação e ao fortalecimento das suas identidades para lutar por suas necessidades.
Daí, há a precarização desses espaços de coletivos, mas também das universidades. Eu trabalhei, no final do ano passado, com a Escola de Arte Dramática, que fica dentro da USP. É uma escola de teatro pública, mas que está totalmente precarizada, assim como a Universidade de São Paulo, em alguns campus, também está. É um movimento anti cultura. Infelizmente, os governantes, que deveriam proteger esses espaços, estão os enfraquecendo.
Eu acho que existe uma diferença de visibilidade entre os Contadores de Mentira e o Clariô, por exemplo, que são coletivos que estão fora do eixo mercadológico ou do eixo central do teatro, para o Teatro de Container, que é um movimento de cultura e arte central. Só a questão geográfica já ajuda no apoio ao coletivo do Teatro de Container, o que — ainda bem — faz com que essa luta se reverbere de uma forma muito mais rápida.
Nos casos do Clariô e dos Contadores de Mentiras, que é o coletivo de Suzano que foi literalmente despejado do seu espaço depois de 30 anos de luta no território, existe uma dificuldade um pouco maior, porque a visibilidade não é tão forte. São coletivos que, além da questão artística, carregam em si a questão geográfica e, no caso do Clariô, a questão racial. Isso tudo pesa na hora de a gente ir para a guerrilha.
Mas, de qualquer maneira, todo mundo se encontra na mesma vala da precarização da cultura, da arte e da fortaleza que são esses coletivos de teatro, que são muito importantes para a cidade. As cidades poderiam ter espaços que fortalecessem mais o debate e o diálogo com a diversidade cultural. E não vamos criar narrativas que correspondam à expectativa desses governantes sobre o que eles entendem como arte.
Você também é atriz e atuou em Todas as Flores, Beleza Fatal, Irmandade, e, mais recentemente, interpretou Elza Soares em Elza Musical. Você faz parte, junto com Zézé Motta, do elenco do filme Dolores, inspirado em um roteiro deixado pelo cineasta Chico Teixeira, falecido em 2019, e que terá sua primeira exibição no Brasil durante o Festival do Rio de Janeiro. Como está essa produção?
É muito emocionante esse filme como um todo. Primeiro pelo legado deixado por Chico Teixeira. Eu nunca tinha feito um filme dele, mas sempre ouvi falar de todos os artistas que participaram de alguma produção em que ele estava envolvido que ele tinha muito afeto, muito carinho.
Então, essa foi uma produção recheada desse sentimento afetuoso. Também me desafiou de muitas formas. É uma personagem muito bonita que tem uma trajetória diferente das coisas que eu já tinha feito e com quem eu me identifiquei bastante.
Sempre quis trabalhar com Marcelo Gomes, diretor do filme. Eu acho que Cinema, Aspirinas e Urubus, também dirigido por ele, foi um grande filme brasileiro de uma geração que trouxe o Nordeste e que me conecta nesse lugar. Eu tenho uma conexão muito forte com Pernambuco, pela minha família. Então, foi muito emocionante, de várias maneiras. Eu nunca tinha trabalhado com a Maria Clara Escobar, que também dirige o filme e é incrível.
E, especialmente com a Zezé, fazer parte de um trabalho em que ela esteja envolvida é algo que me emociona muito. Eu já trabalhei com a Zezé, mas não no cinema. A gente fez um projeto de músicas juntas.
Fizemos um show juntas para um festival feminino e foi muito emocionante, porque Zezé é, de fato, uma das mulheres que mais me inspira como artista, por ser uma artista negra da geração dela, que reivindicou um lugar muito especial, que não abriu mão de estar em cena com identidade e autenticidade, e confrontou todos os lados para fazer os trabalhos fez.
A maneira como ela se colocou no mundo, de uma entrega forte, me inspira muito. E ela é essa artista que transita entre o audiovisual, o teatro e a música, o que eu também faço. Então, certamente, é a pessoa onde eu mirei, mostrando que é possível fazer e se encontrar em todas essas frentes, dialogando com elas, além de ser uma pessoa extraordinária.
Tem uma ousadia super bem vinda, especialmente nesse campo das artes negras, porque a gente tem muita coisa para falar. Fomos silenciadas durante muito tempo. Então, onde podemos colocar nossa arte, nossa fala e nossa voz, qualquer incentivo é muito bem vindo.
No filme, a gente não se encontra, mas, só de saber que ela estava na produção e encontrá-la nos bastidores, me encheu o coração. Eu não vi o filme ainda. Vou assistir agora no Festival do Rio, no próximo final de semana. Estou bem ansiosa para saber como ficou o resultado final. Eu não vi nem o último corte.