À procura das raízes do racismo no país onde “morrem Georges Floyds todos os dias”

Enviado por / FonteVisão, por Vânia Maia

Dois brasileiros confrontaram-se com o papel dos portugueses na escravatura ao percorreram nove países africanos em busca da herança negra do Brasil. Perante as manifestações antirracistas que varrem o mundo, o fotógrafo César Fraga e o historiador Maurício Barros de Castro denunciam o “negacionismo racial” do governo de Bolsonaro

Quando era criança, o afro-brasileiro César Fraga, 47 anos, ouviu a mãe contar-lhe que a sua bisavó materna só não foi escrava graças à Lei do Ventre Livre. Também conhecida como Lei Rio Branco, esta legislação, aprovada em 1871, previa que as crianças nascidas de mães escravas seriam livres no Brasil.

“A minha bisavó morreu quando eu tinha 10 anos, nunca soube pormenores muito específicos, mas sei que ela sentiu um enorme conflito interno por ter direitos que os pais não tinham, por serem escravos. Ela achava isso muito injusto”, conta o fotógrafo.

Sentindo o peso da escravatura na história da família, César Fraga começou a questionar o que existia antes do “navio negreiro” que parecia limitar a herança africana do Brasil ao negro brutalizado e explorado. “Nunca vi um jovem querer associar-se a um negro agrilhoado num barco, mas é só isso que mostram os livros de História que eu cresci a ler”, ilustra. Nas suas visitas a escolas brasileiras, está habituado a que, diante de uma plateia de estudantes maioritariamente negros, ninguém levante a mão quando pergunta se alguém é afrodescendente.

Por isso, decidiu partir em busca de referências históricas que contrariassem essa visão tão redutora. “Eu queria trazer um pouco da riqueza cultural de África para o Brasil e, com isso, ajudar a combater o racismo no meu país”, afirma o designer, que se tornou fotógrafo depois deixar para trás a agência de publicidade que tinha fundado.

Nunca vi um jovem querer associar-se a um negro agrilhoado num barco, mas é só isso que mostram os livros de História que eu cresci a ler
CÉSAR FRAGA, FOTÓGRAFO AFRO-BRASILEIRO

Juntou-se ao historiador brasileiro Maurício Barros de Castro, também de 47 anos, e, ao longo de dois meses, visitaram nove países africanos, incluindo antigos territórios colonizados pelos portugueses, como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Também passaram pelo Senegal, Togo, Benim e Nigéria. A expedição deu origem a um livro, uma exposição de fotografia e uma série documental sobre as influências culturais africanas potenciadas pelo tráfico de escravos para o Brasil. O livro Do Outro Lado (Editora Olhares) não tem edição portuguesa e os documentários ainda não têm data de exibição no nosso País (no Brasil, são exibidos na TV Prime Box Brazil). César Fraga também gostava de conseguir trazer a exposição a Portugal.

Durante o seu périplo africano, César Fraga revela que foi na Nigéria onde encontrou “mais Brasil”. Até se cruzou com uma festa de Carnaval na cidade de Lagos. “Até churrasquinho no meio da rua havia”, recorda, surpreendido.

O fotógrafo tinha a expetativa de encontrar mais raízes brasileiras em Angola, já que cerca de metade das pessoas escravizadas levadas para o Brasil eram originárias desse país, “mas a mão do colonizador foi muito forte”, nota. “Os angolanos são muito portugueses, foi muito difícil encontrar a Angola pré-colonial.” A capoeira e o samba, por exemplo, têm origem na cultura Bantu, do sul de Angola.

O Parque das Pedras Negras de Pungo Andongo, na cidade de Malanje, é um dos locais emblemáticos da rota da escravatura (Imagem retirada do site Visão)

À flor da pele

Maurício Barros de Castro situa a origem do racismo no Brasil no tráfico de escravos. “Naquela época, a Igreja e a Ciência justificaram o discurso de que o negro era inferior. E esse pensamento persiste ainda hoje”, defende. O docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sublinha que a História narrada pelos vencedores “invisibiliza a importância das lideranças africanas que se organizaram para combaterem a escravatura”. Afinal, “a sua abolição não resultou de uma simples lei, também foi o resultado da luta da libertação”.

Portugal foi o primeiro País a transportar pessoas escravizadas de África para as Américas. Ao todo, traficou 12 milhões de africanos

No Brasil, existe uma lei que obriga ao ensino da história afro-brasileira nas escolas do país, “embora não altere o racismo estrutural, é um instrumento antirracista”, defende Maurício Barros de Castro.

Portugal foi o primeiro País a transportar pessoas escravizadas de África para as Américas. Entre 1501 e 1866, cerca de 12 milhões de africanos foram forçados a embarcarem – 2 milhões não resistiram à viagem. No Brasil, a escravatura foi abolida em 1888.

César Fraga considera-se o exemplo do “brasileiro clássico”, além de ter negros e indígenas na família, o seu avô materno era filho de portugueses. “A sociedade brasileira é das mais ricas do mundo culturalmente, mas existem diferenças raciais enormes”, afirma.

“Uma criança, filha de uma empregada, morreu enquanto a patroa da mãe tomava conta dela. Isso aconteceria se ela fosse branca?”, questiona. O caso aconteceu no início de junho e chocou o Brasil. Miguel Santana da Silva caiu do nono andar de um prédio de luxo, na cidade do Recife, em Pernambuco. Tinha 5 anos.

A capoeira e o samba têm origem na cultura Bantu, do Sul de Angola (Imagem retirada do site Visão)

Uma história de violência

Curiosamente, também o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) era originário de Pernambuco. Foi ele o grande obreiro do lusotropicalismo, que exaltava a miscigenação dos portugueses como prova de um colonialismo mais benévolo do que os demais.

“No Brasil, há a consciência de que o projeto colonial português foi devastador, mas também há um olhar positivo em relação à mistura cultural. Agora, é preciso desconstruir a ideia de que foi uma colonização mais branda, como se a tortura pudesse ser branda. O que resultou da mestiçagem foi uma hierarquia, em que o branco é mais valorizado, e não um país multicultural”, explica Maurício Barros de Castro.

Nas suas visitas a Portugal, o historiador percebeu que, por um lado, “existe o interesse de recuperar o passado histórico no sentido de reconhecer a participação portuguesa na escravatura e de provocar uma mudança mas, por outro, ainda há dificuldade em encarar a questão racial no País; os traumas levam a silêncios”, declara.

Reconhece-se toda a violência do colonialismo português, que está na origem de muitos dos problemas de hoje, mas os portugueses que vivem no Brasil estão muito próximos da população e isso criou uma grande afetividade
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO, HISTORIADOR

O historiador classifica a relação dos brasileiros com Portugal de “muito ambivalente”. Por um lado, “reconhece-se toda a violência do colonialismo português que está na origem de muitos dos problemas de hoje. Por outro, os portugueses que vivem no Brasil estão muito próximos da população e isso criou uma grande afetividade”.

Imagem retirada do site Visão

César Fraga conhece Lisboa e o Porto. Aliás, foi numa noite de São João, há três anos, que decidiu, juntamente com a mulher, chamar João ao filho do casal. O fotógrafo não vê ressentimento dos brasileiros em relação aos portugueses devido ao passado colonial. “Existe mágoa do movimento negro em relação ao branco, mas não necessariamente contra os portugueses”, esclarece. “No subúrbio carioca vivem muitos portugueses, eles estão associados a zonas não favorecidas, são os donos do bar onde o pessoal vai, há muita proximidade”, diz o carioca, a residir em São Paulo há 11 anos.

O fotógrafo sente que, nos últimos dois anos, a luta contra o racismo no Brasil “recuou cinco décadas”. E dá um exemplo: “O presidente da Fundação Palmares [Sérgio Camargo], que deve promover a igualdade racial no Brasil, é um negro racista”, acusa – chegou a afirmar que a escravatura trouxe benefícios. Ao mesmo tempo, o presidente Jair Bolsonaro “desdenha do assunto e trata-o de forma jocosa”, apesar de 56% da população brasileira ser negra.

A Polícia Militar mata negros todos os dias. Nós temos Georges Floyds todos os dias
CÉSAR FRAGA, FOTÓGRAFO AFRO-BRASILEIRO

“Conheço pessoas que têm medo que o seu filho negro vá correr no bairro onde vive porque pode ser alvo da polícia, mas uma criança branca já pode correr em qualquer lugar”, ilustra o ex-publicitário. “Já para não falar nos garotos que não arranjam emprego por causa da cor da pele, são batidos pela polícia e acabam a aceitar a armadilha social do tráfico de droga”, sintetiza.

“O racismo está sempre presente”, conclui César Fraga. “A Polícia Militar mata negros todos os dias. Nós temos Georges Floyds todos os dias.”

A cor da pobreza

Maurício Barros de Castro não duvida de que, no Brasil, a pobreza tem cor: “Ela é primordialmente negra”. Basta ir a uma favela para o confirmar. “Quando acabou a escravatura não houve o esforço de integrar estas pessoas na sociedade, elas foram abandonadas à sua sorte”, acrescenta.

“O Brasil mantém o projeto colonial de subalternização e de violência, física e social, contra a população negra. Essas histórias estão presentes nos noticiários”, exemplifica o professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, EUA.

O empenho do governo é fundamental para implementar políticas que combatam a desigualdade social, como a aposta na educação pública mas, actualmente, essa não é uma prioridade no Brasil.

A Fortaleza Real de São Filipe, na Cidade Velha, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, foi uma das construções portuguesas visitadas durante a expedição (Imagem retirada do site Visão)

“O atual governo contribui para o negacionaismo racial”, defende o historiador, “tal como nega a Covid-19, a ditadura ou o facto de a Terra ser redonda”.

César Fraga tem esperança que a morte de George Floyd, e as manifestações antirracistas por ela desencadeadas, possam ser um momento de viragem. “Aquela imagem é muito emblemática: um negro algemado, com um joelho no pescoço e um branco de mãos nos bolsos”, descreve.

Também Maurício Barros de Castro assiste ao crescimento da consciência antirracista nas novas gerações. “As manifestações a que temos assistido são um sintoma de uma população, na qual também estão incluídos os brancos, que já não tolera este tipo de violência”, nota, antes de acrescentar: “A partir de agora, a resposta será global”.

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