Comoção antirracista da branquitude ou vira prática ou hipocrisia, diz articulador de manifesto

“É incoerente manifestar repúdio ao racismo e apoiar políticas econômicas, de saúde e de segurança pública que matam pessoas negras todos os dias”, afirma Douglas Belchior, 41, cofundador da Uneafro Brasil, uma das 150 entidades que conformam a Coalizão Negra por Direitos, autora do manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”, lançado na semana passada.

O texto, subscrito por artistas, empresários e intelectuais negros e brancos, afirma que “qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo” e pede coerência àqueles que agora se autodeclaram antirracistas.

Para Belchior, a questão racial, quando deixou de ser tabu, foi tratada como “mais um assunto” na agenda democrática brasileira quando é fator determinante, como reivindica o manifesto.

“O movimento negro denuncia o racismo e suas injustiças desde sempre”, afirma ele, cuja organização foi gestada no vitorioso movimento de cotas raciais nas universidades. “Hoje está consensuado no campo progressista que o racismo estrutura as relações no Brasil. Portanto não podemos pensar na solução de problemas sem olharmos para aquilo que os constitui.”

O historiador, educador e ativista avalia como positivo o apoio à democracia por 75% dos brasileiros, um recorde apontado por pesquisa Datafolha divulgada neste domingo (28), e aponta que o entendimento sobre democracia é que agora precisa ser aprofundado.

“A democracia que experimentamos não garantiu justiça, igualdade de oportunidades e cidadania à população negra, que conforma a maioria da população brasileira. O aumento do apoio à democracia precisa estar acompanhado da percepção de que, com racismo, ela jamais será possível.”

Criada em 2019, a Coalizão Negra por Direitos se coloca como continuidade dos projetos para o país elaborados pela Frente Negra Brasileira, em 1931, pelo Movimento Negro Unificado, em 1978, a partir de ações nacionais e internacionais em rede contra o racismo.

Em pouco tempo, a organização atuou na Câmara e no Senado, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e no Alto Comissariado da ONU, em Genebra, na Suíça. Participou da elaboração do projeto de renda mínima emergencial aprovado pelo Congresso no início da pandemia. E exigiu a divulgação pelo Ministério da Saúde de recortes de raça dos mortos por Covid-19.

Belchior esteve envolvido em boa parte dessas iniciativas. “Temos de conciliar a luta política ampla com a luta cotidiana pela sobrevivência do nosso povo nos territórios, onde cada entidade atua de forma permanente e, durante a pandemia, organiza o trabalho humanitário”, diz.

“Nossa luta não é vazia, efêmera ou baseada em uma bandeira ideológica. É a luta pelo direito de viver.”

Qual a diferença entre o manifesto pela democracia da Coalizão Negra por Direitos e outros? Não somos uma movimentação efêmera, mas histórica, ou seja, com acúmulo de elaboração e de propostas. Outras manifestações são motivadas pela preocupação momentânea de que a democracia está em risco. Contestamos esse pressuposto: a democracia não está em risco porque não é democracia. Nunca foi.

Com racismo não há democracia porque ele está na raiz dos problemas sociais brasileiros. O manifesto é uma convocação para que frentes pela democracia se somem ao nosso programa político sob o risco de não construírem democracia, mas a manutenção de privilégios para brancos.

Como assim? O Brasil é uma grande fazenda com roupa nova. Mudanças ocorreram para garantir permanências, com acordos por cima. É uma história trágica, dividida entre três quartos de escravidão e um quarto sem escravidão, mas no qual descendentes daqueles escravizados permaneceram alijados de direitos.

Nosso olhar está tão condicionado que não percebe que não há nada mais antidemocrático que certas configurações que dizem falar em nome da democracia e do povo brasileiro –em geral formadas apenas por pessoas brancas. Isso é colocar uma roupa nova em um corpo velho, que não nos serve e não nos permite viver.

Qual é o resultado disso? A democracia é uma abstração para a maior parte dos brasileiros. Mesmo no período dito democrático, a violência não deixou de acometer segmentos expressivos da sociedade. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, onde pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que brancas e representam mais de 75% dos mortos pelas polícias.

O racismo estrutura o Estado e a sociedade, afeta polícia, empresas e instituições. Ele é determinante, e não haverá democracia no Brasil se não se reparar as consequências do que somos historicamente: um país escravocrata.

Reparação histórica é algo que pode soar inatingível. Como seria isso? É olhar para índices de desigualdade social e enxergar que são fruto da nossa história escravocrata e da permanência de sua lógica: o peso do estereótipo, o preconceito, a discriminação que fez com que gerações de negros não tivessem acesso a escola, trabalho ou terra. Então, o primeiro passo é reconhecer o maior crime de lesa humanidade foram 400 anos de escravidão de um povo. E reconhecer que toda a riqueza produzida no país tem essa origem. Taxar fortunas e renda, e criar políticas públicas com investimento pesado e dirigido à população negra.

Como enxerga a adesão ao manifesto? Para além de lideranças do movimento negro, setores e personalidades importantes se somaram ao manifesto. O [cantor e compositor] Caetano Veloso e [a antropóloga e historiadora] Lilia Schwarcz, por exemplo. Em 2006, eles assinaram o manifesto contra as cotas raciais. Isso é um marcador histórico importante, que aponta para uma mudança de consciência. Tivemos um debate, vencemos, e as pessoas se convenceram de que fazer política para reparar danos que o racismo causa é importante para constituir justiça. Ou seja, avançamos.

E como interpreta a adesão de pessoas brancas ao antirracismo? O racismo não é um problema dos negros. E seu enfrentamento é pressuposto para a construção da democracia. Logo, é tarefa de todos os que a valorizam. Nosso recado é: a branquitude é o poder no Brasil. E essa comoção momentânea tem de se transformar em prática sob o risco de se configurar numa grande hipocrisia coletiva.

Por que essa comoção ocorre agora? Porque parte da branquitude brasileira, horrorizada com os absurdos que esse governo promove, percebe e estranha agora violências habituais para a população negra. Para além disso, os movimentos negros avançaram tanto com sua agenda que soa hipócrita a defesa da democracia e a cegueira ao racismo. E que bom.

O apoio ao antirracismo não seria por solidariedade, mas por medo? Há as duas coisas. Mas há brancos aderindo agora à luta antirracista porque também se sentem ameaçados. Albert Camus [escritor franco-argelino] dizia que a consciência é fruto da revolta. Em 2013, quando jornalistas brancos da Folha apanharam da polícia na rua, a violência policial passou a ser um assunto. O movimento negro estava nas ruas denunciando o genocídio negro pelas polícias. Mas temas que nos atingem desde sempre viram debate nacional apenas quando passam a atingir outros segmentos.

Como a pandemia entra nessa equação? É uma distopia que revela um absurdo: uma doença letal para todos, mas que acomete e mata mais pessoas negras que brancas. Pouco depois da chegada da Covid-19 no Brasil, já havia mais contaminados nas periferias que entre ricos. Um mês atrás, o presidente da XP Investimentos deu uma declaração canalha sobre a retomada da economia que é emblemática da mentalidade da elite do Brasil. Disse que o pico da doença tinha passado nas classes média e alta, e que o problema eram as favelas.

Fecharam a cidade, fecharam tudo, enquanto a doença acometia ricos. Quando despenca entre eles e explode entre pobres e pretos, abrem a cidade e acabam com o isolamento social. Que nome você dá pra isso? Isso é genocídio. É uma ação deliberada do Estado que vai resultar na morte desproporcional de determinado segmento da população. Isso é crime de responsabilidade.

Como o movimento negro e a Coalizão têm agido na pandemia? O movimento negro é, por natureza, de base e tem feito o grosso do trabalho humanitário no Brasil, arrecadando e distribuindo alimentos e produtos de limpeza e higiene. A Uneafro, por exemplo, entrega cesta básica, monitora a saúde das pessoas com agentes comunitários, acompanha famílias quando morre alguém e, eventualmente, paga velório.

Ao mesmo tempo, a Coalizão ajudou a elaborar a política de renda emergencial aprovada no Congresso, exigiu do Ministério da Saúde a notificação de raça das mortes por Covid-19, denunciou a violência das polícias, foi falar com os presidentes da Câmara e do Senado… Temos de acumular essas demandas políticas com as necessidades básicas de sobrevivência, o que exige enorme esforço. Para os negros, fazer militância política custa muito mais da vida.

O que foi crucial para que o debate do racismo emergisse agora? O único fenômeno capaz de atravessar esse contexto foi o conflito racial, que começa [com o assassinato de George Floyd] nos EUA e estimula protestos pelo planeta. A sensação de que a polícia é mais perigosa e letal do que o vírus levou as pessoas para as ruas. É isso o que sente quem vive onde a polícia age com violência deliberada. E, veja, eu não estou dizendo que o vírus não é perigoso, tá?

Mas é que, apesar da pandemia, mortes por intervenção policial bateram recordes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os dados do processo de genocídio negro não podem continuar a ser ignorados. Nossa luta não é vazia, efêmera ou baseada em uma bandeira ideológica. É a lutar pelo direito de viver. E nela você gasta até sua última gota de energia.​


RAIO-X DOUGLAS BELCHIOR

​Nascido em São Paulo, em 1978, formou-se em história na PUC-SP. Foi filiado ao PT até 2003 e é filiado ao PSOL. É co-fundador da Uneafro Brasil, rede de cursos para jovens e adultos da periferia, e co-fundador da Coalizão Negra por Direitos

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