A profanação de rituais fúnebres é imoral e criminosa

A deferência aos mortos é tradição em todas as culturas conhecidas e estudadas até hoje, e o respeito aos mortos é extensivo à família enlutada. As carpideiras existem em todo o mundo. É exemplar o quarup – ritual religioso intertribal dos povos indígenas do Alto Xingu que celebra mortos ilustres.

Por  Fátima Oliveira, do O Tempo 

Há sempre alguém para chorar quem morreu, mesmo que em vida não tenha feito por onde merecer ser pranteado. Por mais desprezível que seja o ser humano, depois de morto recebe lágrimas, ainda que seja um lamento pelo que poderia ter sido e não foi, o que é uma explicação filosófica.

A morte e o morrer são temas instigantes da bioética, a ética da vida, que despertaram a minha atenção para os rituais fúnebres de diferentes povos. O respeito aos mortos é pancultural. Há tréguas em guerras para que os mortos sejam enterrados.

Foi com perplexidade que li sobre a profanação do velório de José Eduardo Dutra, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e da Petrobras – cujo nome não aparece em nenhuma denúncia da empresa! O que torna mais espantosa a chamada do panfleto, jogado na porta do velório: “Petista bom é petista morto!”.

Dois delitos graves: profanação praticada contra um morto e usurpação do direito que tem a família de velar em paz o seu morto! Em que mundo vivemos que não podemos sequer velar nossos mortos? Até animais velam seus mortos!

Em “Morrer é o destino igualitário e inexorável do ser humano”, declarei que “a minha relação com meus mortos é de muita deferência… Compreendo que somos programados para morrer!” (O TEMPO, 4.11.2014).

Na cultura nordestina, a gente se despede de pessoas conhecidas que morrem indo à sentinela (velório) e/ou ao enterro, como uma obrigação moral natural, tanto é que velórios e enterros são “pontos de encontro”, sobretudo no sertão. Aprendi a respeitar a morte e os mortos desde tenra idade.

Meu primeiro marido dizia que eu tinha muito medo de não ter gente em meu velório porque eu ia a muitos, sobretudo acompanhando o meu avô Braulino, que vestia sempre a sua melhor roupa de linho bem engomada para velar uma pessoa amiga. E ele marcava presença nos velórios comigo a tiracolo. Meu marido não entendia porque ele não ia de táxi ou eu não contratava um chofer para ele. Eu respondia que não seria tão “sertão”, com dois significados: o de certo e o do nosso lugar cultural!

Tenho a morte como realidade bem próxima. Quando criança, eu me pelava de medo de gente que morria. Até de anjinhos. Quando passei no vestibular de medicina, uma irmã do meu avô disse: “Como que a Fátima vai ser médica se morre de medo de defunto?”. Apenas uma pálida ideia de quão medrosa eu era. Hoje, entendo as razões do meu medo: um contato muito cedo com a morte numa época em que fazer medo com morto – que puxava o pé de criança desobediente – era habitual.

Fui uma estudante de medicina que tinha pavor de defunto, caso não visse a cara de quem estava “num pacote” (nome horrível!). Depois de médica, o medo virou necessidade de saber “quem morreu”, caso contrário eu ficava em busca de um rosto. Não era propriamente mais um medo.

Fiquei órfã de pai aos 10 anos. Perdi uma irmã, Cássia Maria, com uns 2 anos de idade, intoxicada com querosene, pouco tempo após a morte de papai (1963), e em seguida o meu avô paterno também faleceu. O meu marido faleceu de modo trágico num acidente de cavalo quatro dias antes de eu completar 32 anos (1985). Rememorei meus mortos para ter uma vaga ideia do que sentiria ao ver seus rituais fúnebres profanados. Exigiria justiça!

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