A revolução de Bernie Sanders

Com seus desarrumados cabelos brancos, Bernie é o que há de mais novo na política estadunidense. Faz sentido que o slogan principal que sua campanha adotou nos últimos dias tenha sido “um futuro em que se pode acreditar”. Contra ele, todo o passado que estabeleceu o atual estado de coisas. Só por isso toda a esquerda mundial deve acompanhar o processo com atenção 

Por GUILHERME DE PAULA, do Revista Espaço Acadêmico

O resultado do cáucus em Iowa na noite desta segunda-feira deu substância e materialidade a uma curiosa jornada em curso na maior potência do planeta nos últimos meses: um senador que se intitula socialista e que passou toda sua carreira política como independente tem chances reais de vencer Hillary Clinton na corrida pela nomeação democrata para as eleições nacionais para a sucessão de Barack Obama na Casa Branca.

A narrativa ganha ainda contornos de inegável improbabilidade quando ficamos atentos ao vocabulário que o candidato introduziu no debate eleitoral estadunidense para atingir tal status: Bernie fala em “revolução política”, “socialismo”, “classe trabalhadora”, “redistribuição” e entoa, em todo discurso, como uma provocação em forma de refrão: “querem ouvir uma ideia radical?”, entre outras noções que embora sejam clássicas da política moderna, raramente ocupam alguma centralidade no debate daquela nação. Não é incomum assistirmos em seus comícios, críticas e provocações a empresas gigantes dos mercados, como fez com a Goldman Sachs, Wall-Mart e Monsanto.

Não são apenas palavras. A plataforma programática de Bernie, ou, digamos, o seu “socialismo democrático”, é bastante audacioso se pensado dentro do contexto em que se insere: sistema de saúde público e gratuito, universidade sem taxas, reforma do sistema de doação eleitoral minando a força das grandes corporações, criação de empregos públicos para reconstrução da infraestrutura do país (pontes, estradas, etc), dobrar o salário mínimo (saltar para 15 dólares por hora), combater a mudança climática taxando e limitando as grandes corporações, uma política de imigração humanitária, o fim da política do massivo encarceramento de jovens pobres, negros e latinos, reforma radical do sistema tributário taxando altas riquezas e punindo especuladores de Wall Street trocando a política de multas por processos penais, uma política diplomática multilateral e que empreenda os países do mundo árabe como combatentes na luta contra o Estado Islâmico.

O programa ganha tom de autenticidade por dois motivos: primeiro, porque prima pela educação política e não pelo oportunismo de dizer o público quer ouvir. Foi Bernie que introduziu a sua noção de “socialismo democrático” e suas pautas no debate, certamente não sem um custo político que não é dos mais favoráveis em um contexto marcado pela influência de quase um século de anticomunismo e ultrapromoção dos valores capitalistas. Não há um debate ou uma entrevista importante em que o candidato não tenha que se explicar em relação ao que denomina socialismo. O faz geralmente aproximando-se do que a Europa acostumou chamar o Welfare State, sem nenhuma crítica expressa ao capitalismo, o que fez com que Noam Chomsky o considerasse, recentemente em entrevista à Al Jazeera, “um new Dealer”, repetindo uma expressão em tom de crítica pelas suas limitações de radicalidade que a revista Jacobin já vem fazendo desde o ano passado. De qualquer maneira, não parece nenhum oportunismo de Bernie ao reivindicar debates e questões que não são de fácil comoção e que demandam toda uma construção argumentativa para fazer valer suas explicações. Aliás, mesmo os seus críticos de esquerda reconhecem que ele é, indiscutivelmente, o melhor candidato da disputa.

A autenticidade de sua campanha ainda se escora em outro ponto. A trajetória de Bernie se inscreve, como o professor Cornel West e a atriz Susan Sarandon já disseram ao apresentá-lo em comícios e Iowa durante a semana, na tradição de pensamento democrático mais radical e libertário que os Estados Unidos experimentaram ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI. O senador de Vermont esteve quase sempre – as duas exceções talvez sejam a sua posição em relação a Palestina e Israel e o seu posicionamento perante ao controle de armas – do lado mais radical e crítico das questões políticas que marcaram os Estados Unidos. Nos anos 60, foi militante dos direitos civis e marchou com Luther King, nos anos 80 se pronunciou diversas vezes em favor dos direitos LGBT e ao longo de sua caminhada, foi atuante defensor da classe trabalhadora em incontáveis disputas contra corporações de diversos ramos possíveis – petrolífero, da saúde, dos bancos, das empresas de varejo, do complexo militar-industrial, etc.

A jornada nas primárias democratas não são das mais simples: para vencer ou, ao menos fazer frente à sua rival, precisa enfrentar uma estrutura partidária estabelecida e aparelhada pela família Clinton há décadas: uma façanha que Obama conseguiu há oito anos. Na época, muitos avaliaram que o casal ignorou a possibilidade de perder e que a arrogância na análise não permitiu resguardos que certamente freariam a ascensão do então senador de Chicago. Desta vez estão preparados e vacinados. Enfrentar este poderio exige, além de força e ideias, muito dinheiro e muita capacidade de comoção de militantes dispostos a trabalhar de graça.

Em Iowa, estima-se que mais de 15 mil voluntários pediram votos por Bernie. Além disso, um montante inédito na história das eleições estadunidenses de doações individuais abasteceu os cofres da campanha: no discurso da noite desta segunda-feira, o candidato afirmou ter recebido 3.5 milhões de doadores individuais em uma média de 27 dólares cada. Além das doações dos seus militantes, Sanders tem como principais contribuintes financeiros uma série de sindicatos: dos trabalhadores têxteis, dos profissionais das telecomunicações, das enfermeiras, dos empregados postais, dos bombeiros, dos maquinistas e aeroviários, entre outros. Nesta semana, a banda californiana Red Hot Chilli Peppers anunciou que fará um show com intuito de arrecadação para a campanha de Bernie. Um esforço charmoso e até heroico, mas de difícil sustentação se comparado à incomparável capacidade de arrecadação de sua rival – aliás, a tendência é que os empresários aumentem ainda mais o investimento na candidata com crescimento de seu adversário, sobretudo após o resultado do cáucus de Iowa e das pesquisas de New Hampshire o confirmarem como uma ameaça real.

A viabilidade eleitoral de Bernie Sanders agora constatada já trouxe algumas consequências. A mais relevante pode ter sido o fato divulgado pela imprensa há alguns dias, de que o serviço secreto designou uma equipe para protegê-lo. Perguntado pela CNN se tinha recebido alguma ameaça que motivara a novidade, o senador disse que não poderia responder por questões de segurança. Seu crescimento incomoda o establishment econômico e seus correspondentes midiáticos e políticos. Suas frases são distorcidas e tiradas de contexto pela grande imprensa e talvez o episódio recente mais representativo tenha vindo do Washington Post, que na semana passada publicou um editorial acusando-o de desrespeitar as normas e formas democráticas do país ao propor sua “revolução política”.

Na noite em que Hillary e Bernie virtualmente empataram na disputa por delegados de Iowa, o terceiro candidato democrata na corrida, o ex-governador de Maryland, Martin O’Malley, desistiu de continuar a disputa, transformando em oficial a polarização entre establishment e tudo que cerca a dinastia Clinton versus o antissistema representado na figura de Bernie. A expressão “feel the bern”, trocadilho que ganhou as redes sociais nas últimas semanas, caracteriza a expansão e o crescimento de um candidato que se ergueu com uma trajetória sólida, coerente e consistente, que se tornou viável se esgueirando nas bordas de um partido que se organizou para que Hillary não tivesse concorrentes e que, quando teve a oportunidade, se expandiu levando um discurso que embora não seja novo na história da política moderna, ainda não havia encontrado momento propício para reverberar na superpotência do nosso tempo.

Sanders já rumou para New Hampshire para a próxima etapa de sua jornada. Com seus desarrumados cabelos brancos – que nos serve como um lembrete constante de que este senhor pode ser o mais velho presidente dos Estados Unidos de todos os tempos, com as mesmas pautas que sustenta desde a década de 60 e 70 e seu antigo socialismo democrático, Bernie é o que há de mais novo na política estadunidense. Faz sentido que o slogan principal que sua campanha adotou nos últimos dias tenha sido: “um futuro em que se pode acreditar”. Contra ele, todo o passado que estabeleceu o atual estado de coisas. Só por isso, toda a esquerda mundial deve acompanhar o processo com atenção. Há muito para se aprender com a trajetória de Bernie Sanders desafiando de maneira arrojada e improvável uma série de poderes estabelecidos no coração do capitalismo mundial.

 

* GUILHERME DE PAULA é Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Publicado originalmente na Revista Forum.

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