A situação dos negros revelada na literatura afrodescendente

por Anelito de Oliveira

O grande acontecimento editorial deste 2011, no âmbito dos estudos literários, é “Literatura e Afrodescendência no Brasil: Antologia Crítica”, quatro volumes organizados por Eduardo de Assis Duarte, um deles em parceria com Maria Nazareth Fonseca, belo produto da Editora UFMG.

O mínimo que se pode dizer diante desse trabalho é que ressoa, por toda parte, o êxito de Assis Duarte, que dedicou dez anos à pesquisa de textos e autores afro-brasileiros, à reflexão rigorosa sobre seus trabalhos, ao diálogo com muitos daqueles que estão em atividade, à articulação de pesquisadores em torno do tema e, o que é muito significativo, à meditação sobre a natureza da literatura afrodescendente.

A seriedade desse trabalho, seu caráter altamente respeitável, começa na vontade de saber o que é realmente a literatura afrodescendente no Brasil. Assis Duarte não parte de certezas ortodoxas, mas de dúvidas elementares, que o levaram a orquestrar uma antologia viva, pulsante, que constitui, especialmente, um convite generoso a diálogos diferenciantes sobre diferenças.

Em movimento oposto à tradição crítica não só nos estudos literários, mas também nos estudos de história e sociologia, política e economia, o trabalho não opera no sentido de construir uma imagem homogênea da comunidade afrodescendente brasileira, solucionando, no plano do discurso, problemas que atravessam sistematicamente essa comunidade na vida social.

O traço marcante da obra é precisamente a heterogeneidade da produção literária afrodescendente no Brasil, acusando a heterogeneidade que define essa comunidade. Somos (não posso me negar) autores muito diferentes, tanto os fundadores quanto os consolidadores e, mais ainda, os contemporâneos, cada um expressando a condição afro-brasileira à sua maneira, mas enfrentando um mesmo problema: a dificuldade de se afirmar no mundo literário.

Assis Duarte, na abertura, vai direto ao ponto, perguntando, no rastro de Gayatri Spivak, se nós, negros, podemos falar na sociedade brasileira enquanto tais, ou seja, enquanto negros, sem negar a nossa própria negritude. Naturalmente, não porque a sociedade brasileira está programada para funcionar cordialmente, e negros falando como negros perturbam essa cordialidade.

O sistema literário – que não é feito só de obra, autor e leitor, mas também de agentes, editoras, distribuidoras, livreiros e cadernos culturais, como pensa Robert Darnton – contribui, eficientemente, com essa programação à medida que ignora a produção de poetas, ficcionistas e ensaístas negros, preferindo encarar tudo que se faz no Brasil sob o signo da uniformidade, como literatura brasileira, isto é, pastiche da pior literatura estadunidense.

A antologia é um atestado eloquente – o mais eloquente de todos – de existência de uma literatura afrodescendente no Brasil, que se define por um estranhamento no seio da própria literatura brasileira, que é e não é literatura brasileira, que se alimenta de uma fértil crise identitária, reveladora, portanto, da conflituosa situação que os negros vivenciamos no país, sempre sob suspeita de toda ordem, inclusive de não escrever literatura brasileira propriamente dita (excelente suspeita).

Ao reunir dezenas de autores e pesquisadores numa obra tão audaciosa, Assis Duarte logrou produzir algo que, na verdade, extrapola o espaço acadêmico, o âmbito da pesquisa, bem como o espaço editorial, o âmbito dos livros, para se afirmar como uma ação política contundente, oportuna, um divisor de águas na organização e na valoração da produção literária no país.

 


ANELITO DE OLIVEIRA

Doutor em letras pela USP e professor (Unimontes)

Fonte: O Tempo

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