A solidão da mulher trans

Será que realmente podemos ser amadas?

Nós mulheres trans e travestis heterossexuais (que gostamos de homens) podemos ter um relacionamento amoroso?

Será o amor um privilégio cisgênero?

Essas questões permeiam o pensamento da maioria de nós. Mulheres trans e travestis são fetichizadas, tem seus corpos objetificados, somos hiperssexualizadas na grande maioria das vezes por homens cis heteros.

A possibilidade de assumir um relacionamento amoroso com uma mulher trans ou travesti, traz diversas questões a um homem cis hetero. Vivemos em uma sociedade transfóbica que infelizmente não enxerga mulheres trans como mulheres, então socialmente, um homem que se relaciona com uma mulher trans ou travesti é visto como gay. Obviamente este é um grande equívoco social; mulher trans é mulher; não é o que carregamos entre as pernas que define nosso gênero. O gênero é uma construção social baseada em nossa identificação e em nada se se relaciona com o biológico.

Ora, um homem hetero que sempre teve uma orientação sexual aceita pela sociedade, legitimada, tida como a correta, ao assumir seu desejo por uma mulher trans terá sua orientação sexual questionada. Pode virar chacota entre amigos e também ter que lidar com o preconceito na família e na sociedade como um todo. Muitos homens, vítimas da masculinidade tóxica e frágil, preferem então ter relacionamentos pautados no sigilo, com o cunho puramente sexual, insistem em manter relacionamentos rasos com mulheres trans, e o amor, o afeto, o relacionamento amoroso em si, ficaria restrito somente a mulheres cisgênero.

Infelizmente, alguns homens cis heteros também não vêem mulheres trans e travestis como mulheres; para estes, a casualidade do relacionamento não os faria gays. A mera satisfação do desejo, do fetiche sem o vínculo amoroso, seria para esses homens uma “variada”, uma diversão, mas não os caracterizaria como gays, devido ausência do vínculo amoroso.

Como psicanalista, eu diria que nós seres humanos temos a necessidade de nos sentir amados, o que parece algo extremamente difícil para mulheres trans e travestis. Existem mulheres trans e travestis que nunca tiveram um relacionamento amoroso na vida, talvez nunca tenham, dada a transfobia social que principalmente no Brasil é totalmente estrutural.

O Brasil é o maior consumidor de pornografia relacionada à mulheres trans e travestis, ao mesmo tempo, o país que mais mata mulheres trans e no mundo.

Sair desse lugar de objeto, fetiche para assumir um protagonismo em um relacionamento amoroso torna-se um enorme desafio para mulheres trans e travestis. O amor que seria básico a todo ser humano, acaba por se tornar um privilégio cisgênero. E mulheres trans e travestis são excluídas, também, no quesito amor e afeto. Uma realidade social, que têm como bases a intolerância e transfobia e que demorará séculos para haver mudanças, pois a transfobia é estrutural.

Somos mortas em vida, quando nos é negado direitos básicos, condenadas ao isolamento e solidão, desafiadas a nos amarmos, independentemente do ódio social propagado. A solidão da mulher trans e travesti é responsabilidade de todos nós enquanto sociedade, e cabe a nós desconstruir a ideia de hiperssexualização de corpos trans. Nós merecemos ser incluídas na sociedade e sobretudo, merecemos ser amadas do jeitinho que somos.

Adriana Beatriz Batista
Mulher transexual
Psicanalista e funcionária pública

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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