A vingança de Barbosa: a luta do goleiro negro por respeito

Será que a derrota de 7X1 para a seleção alemã superou o estereótipo de que goleiro negro é ruim?
por Djamila Ribeiro, do Carta Capital 

Em 1950, na final da Copa da Mundo entre Brasil e Uruguai no Maracanã, além da derrota, o Brasil criou um estereótipo: o de que negro não podia ser goleiro. Moacyr Barbosa, mais conhecido como Barbosa, era o goleiro da então seleção brasileira e foi eleito o grande culpado pelo vice campeonato. Apesar de ser considerado um bom goleiro, Barbosa, que era negro, carregou até o fim da vida, em 7 de abril de 2000, aos 79 anos,  o fardo dessa derrota. A partir desse fato criou-se o mito racista do goleiro negro. Era muito comum ouvir comentaristas de futebol, artistas falando de forma taxativa: “goleiro negro não, não lembram do Barbosa?”

Somente em 2006 a seleção brasileira teve outro goleiro negro como titular, o Dida, 56 anos depois de Barbosa. Antes disso, Dida havia sido terceiro goleiro na Copa de 1998 e feito parte do elenco pentacampeão em 2002 como goleiro reserva. Atualmente Jefferson, goleiro do Botafogo, também atua em alguns jogos da seleção, em times, temos o Aranha, goleiro do Palmeiras, ex Santos, que recentemente foi vítima de racismo.

De acordo com Paulo Guilherme, autor do livro Goleiros – Heróis e Anti-heróis da Camisa 1,  do primeiro jogo da seleção brasileira em 1914, até 2006, 92 goleiros foram convocados e apenas 12 eram negros. O livro também revela que a presença de goleiros negros e pardos na elite do futebol nacional aumenta a cada ano. Em 2004, eles eram 12,5%, em 2005,18% e 2006, 20,5%. Em 2010, os goleiros negros eram 25% e em 2012, 31%.  Mas mesmo assim, o número de goleiros negros ainda é pouco perto das outras posições. Fico pensando quantos meninos negros não tiveram seus sonhos destruídos por conta dessa atitude racista.

Donald Verônico, educador físico e gestor de projetos esportivos, que em 2004 fez uma pesquisa intitulada “O jogador negro no futebol brasileiro: uma história de discriminação”, diz: “o racismo no futebol é reflexo do racismo presente na sociedade brasileira. O ato racista que aconteceu com Barbosa guiou o pensamento de muitos técnicos de futebol, principalmente de categorias de base e de iniciação esportiva, que devem ter matado o sonho de muitos meninos negros os desencorajando a serem goleiros. Em suma, o que ocorreu com Barbosa não se limitou a ele, se estendeu a várias gerações de meninos negros”.

Quando uma pessoa de um grupo historicamente discriminado erra, todo o grupo leva a culpa. Por exemplo, se uma mulher bandeirinha erra num lance, muitos vão dizer: “mulher não serve para trabalhar com futebol” “deveria estar lavando louça”. Ou no caso de Barbosa, criou-se o mito de negros não serem bons goleiros. Em contrapartida, se um árbitro homem erra, ninguém diz que homem não serve para trabalhar com futebol, culpa-se o indivíduo e não o grupo.

E por que isso acontece? Porque grupos historicamente discriminados como mulheres, mulheres negras, negros, carregam os estigmas e estereótipos criados pelo machismo/racismo. Como diz Joan Scott em O enigma da igualdade, “como objeto de discriminação, alguém é transformado em estereótipo”.

Estereótipos são generalizações impostas a grupos sociais específicos, geralmente aqueles oprimidos. Numa sociedade machista impõem-se a criação de papéis de gêneros negando humanidade às mulheres e como forma de manutenção de poder. Por exemplo: “mulheres são naturalmente maternais”, “mulheres devem cuidar de afazeres domésticos”. Esses estereótipos servem para naturalizar opressões que são construídas socialmente e que passam a mensagem de que o espaço público não é para mulheres. Da mesma forma com pessoas negras: “toda negra sabe sambar” “todo negro é bom de bola (desde que não goleiro)”, estereótipos esses que tem a finalidade de nos manterem no lugar que a sociedade racista determina.

Júlio César, goleiro da seleção na última Copa, que também aconteceu no Brasil, obviamente não foi culpado pela derrota da seleção brasileira para a alemã por 7 a 1, a culpa não foi dele, é todo um time que joga, mas não se ouviu ninguém dizer que homens brancos são “frangueiros”, por exemplo. Nenhum mito criou-se em cima do goleiro branco. Pessoas brancas pertencem ao grupo que está no poder, logo suas falhas serão atribuídas aos seus indivíduos, de forma pessoal, mantendo sua hegemonia e poder.

Após a derrota vexatória, Tereza Borba, filha de Barbosa e única familiar viva dele, disse em entrevista que acompanhou o drama e a dor de seu pai por o terem tornado um vilão nacional e finalizou: “ele deve estar feliz”. Não que houve torcida para que isso acontecesse, nem nos nossos piores pesadelos imaginaríamos uma derrota tão contundente, mas agora a memória de Barbosa pode descansar em paz. Que ele possa ser lembrado com respeito pelos seus títulos como a Copa América, Copa Roca e o hexacampeonato carioca pelo Vasco. Enfim, que se faça justiça, não somente a ele, mas a todos e todas que tiveram seus sonhos tirados pelo racismo.

 

PS: Ao realizar a pesquisa para escrever esse texto me deparei com entrevistas de escritores e sociólogos sobre o tema. Alguns deles diziam não haver preconceito em relação aos goleiros negros; que isso se tratava de uma coincidência, o que é uma leitura extremamente superficial não somente dessa sociedade racista, mas como do caso em questão. Triste coincidência racista essa…

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