Marcelo Yuka
“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”
O que há de comum entre um guerrilheiro vietcong em combate contra o exército norte-americano – o mais poderoso da Terra – na guerra do Vietnã, na década de 1960, e um jovem negro do Capão Redondo, periferia de São Paulo, hoje?
Ambos morrem cedo, muito cedo, com vantagem para o guerrilheiro vietcong. Enquanto um combatente no Vietnã, enfrentando a maior potência militar do planeta, tinha uma expectativa média de vida de oito anos, o jovem negro do Capão Redondo não deve esperar viver mais do que cinco, a partir do momento em que passa a pertencer aos quadros dos soldados do tráfico.
Os dados do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, podem assustar ou soar alarmistas, mas o que fazem mesmo é dar uma idéia mais aproximada da realidade de que, apesar das aparências de paz, vivemos uma guerra. Não declarada, mas uma guerra, com as vítimas de sempre.
Quando a Globo mostrou, num domingo, no “Fantástico”, o documentário “Falcão – Soldados do Tráfico”, de MV Bil, a estatística pôde ser comprovada: de todos os meninos entrevistados no documentário, gravado no curto período de menos de um ano, nas principais regiões metropolitanas brasileiras, apenas um sobreviveu para contar a história.
Nascer negro, no Brasil, como se vê, não significa apenas ser candidato a viver nos piores indicadores de carência e pobreza, ganhar cerca de 54% menos, não freqüentar escolas públicas de qualidade e estar condenado a condições subalternas. Significa, principalmente: morrer mais cedo.
A expectativa de vida de um homem negro no Brasil é seis anos menor do que a de um homem branco, de acordo com dados do IPEA, confirmados por todos os demais indicadores sócio-econômicos disponíveis. Isso, em condições normais, digamos assim.
A violência urbana, contudo, tem se encarregado de encurtar ainda mais a precária vida dos jovens pobres – na sua imensa maioria, negros.
O curioso é que esse quadro não se altera, ano após ano. Aparece quase todos os dias na mídia, em estudos acadêmicos, nos indicadores sócio-econômicos e no Mapa da Desigualdade Racial, produzido pelo PNUD. Sua repetição, de tão freqüente, tornou-se monótona. É como uma aberração que, por alguma razão, naturalizou-se. Passou a ser um dado que não provoca mais espanto, nem perplexidade nas pessoas.
A violência dos baixos salários e das condições de vida sub-humanas (de acordo com Estudo do IPEA, 63% da população que vive abaixo da linha de pobreza é negra, e o mesmo ocorre com a condição racial dos 70% que vivem abaixo da linha de indigência) se soma a um outro tipo de violência, não menos perversa, nem menos cruel: a violência do Estado.
Sabe-se que, no sistema de exploração capitalista, o aparelho policial, a máquina repressiva, não é neutra: tem suas vítimas preferenciais. No caso brasileiro, a vítima preferencial é do sexo masculino, jovem e, claro, sempre negra.
GENOCÍDIO
Estudos recentes divulgados pela ONU, no ano passado, atestam que 70% dos jovens com idade entre 15 e 24 anos, vítimas de homicídio no Brasil, são jovens negros, o que caracteriza uma espécie de genocídio que, do mesmo modo, vem se naturalizando, ano após ano. Isso não provoca mais reação de indignação da sociedade civil organizada, nem das organizações de direitos humanos.
É chocante como pessoas bem informadas, que desenvolveram uma notável sensibilidade para determinadas questões, perderam a capacidade de se indignar com dados como esses. Não é muito diferente o que acontece com a indiferença em face da morte de dezenas de crianças indígenas por desnutrição – ou seja, fome – nos últimos dois anos.
É como se crianças morrerem de fome não fosse tão grave por serem crianças indígenas, eis a que ponto chega essa espécie de embotamento social. As mesmas pessoas que sentem repulsa e ânsia de vômito pelo assassinato do menino João Hélio, de uma família de classe média, no Rio, por delinqüentes juvenis, que o arrastaram depois de o garoto ficar preso ao cinto de segurança, não conseguissem reagir à tragédia de crianças de um ou dois anos morrerem por falta de comida – o mais recente capítulo do genocídio de 507 anos, responsável pela redução das populações indígenas de 6,5 milhões, no século XVI, para apenas pouco mais de 700 mil, neste século.
No episódio da guerra entre a Polícia e o Primeiro Comando da Capital (PCC) – a facção criminosa que domina os presídios de São Paulo -, em maio de 2006, os números também não deixaram dúvidas sobre quem são as vítimas. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, num massacre a céu aberto no Carandiru[GK1] , produzido pela Polícia paulista durante uma semana, dos suspeitos mortos, 63% tinham a cor distintiva: negra.
A combinação de pobreza e raça – ou seja, exploração de classe e discriminação racial, fruto de três séculos e meio de escravismo e mais cento e vinte anos da modalidade de racismo camuflado – torna óbvia e previsível a equação sinistra: pobreza + condição racial = morte prematura.
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA RACIAL
Quando se discute desigualdade social e distribuição de renda no Brasil, há pelo menos um consenso, independentemente da posição política e ideológica de quem debata: com cinco copas conquistadas, o país é campeão mundial, não apenas em futebol, mas também no quesito desigualdade. Ou seja: não somos, jamais fomos um país pobre. Ao contrário: somos um país riquíssimo, mas socialmente injusto e, etnicamente, profundamente desigual.
Sob esse aspecto, entretanto, não há nenhum acordo quanto ao fato de que a desigualdade racial e de gênero por aqui são os dois elementos estruturantes da desigualdade social brasileira, obscena mesmo para os nossos padrões.
É a combinação de exploração capitalista, em um nível escandaloso de perversão, e discriminação racial – herança de quase quatro séculos de escravismo – que faz do Brasil o que é: um modelo mundial de desigualdade, digno de figurar em qualquer ranking mundial, por qualquer ângulo que se analise.
Antes que alguém tire conclusões apressadas, é bom esclarecer: não estamos falando dos grotões atrasados, onde as relações de produção não chegaram ao padrão capitalista. Estamos falando do Brasil mais desenvolvido e industrializado. Tome-se, por exemplo, a região do ABC paulista.
Nos últimos trinta anos, essa região, com ênfase em São Bernardo do Campo, esteve no centro dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país. Pode parecer redundante lembrar, mas trata-se da região-berço do novo sindicalismo que se espalhou pelo país, berço da CUT e do PT – o partido político hoje no Governo Federal, e que teve um papel fundamental na luta pelo fim da ditadura e pela redemocratização do país.
Não por acaso, São Bernardo do Campo é a cidade-residência do Presidente da República, e onde Lula tem seu domicílio eleitoral. Não se pode deixar de reconhecer que os movimentos sindicais e populares impulsionados por estes atores, que irromperam na cena política no final da década de 1970, tiveram uma forte importância para a modernização das relações sociais e políticas no Brasil e para a consolidação da incipiente democracia que temos, mesmo que jamais tenha passado do plano formal e esteja longe de significar inclusão e cidadania.
Vejamos quais são os indicadores sócio-econômicos e raciais dessa cidade, que tem, segundo o Censo do IBGE de 2000, em estudo do Observatório Afro-Brasileiro, coordenado pelo Professor Marcelo Paixão, da UFJR, 695.719 mil habitantes, dos quais 194.358, isto é, 27%, são afro-descendentes – pretos e pardos, de acordo com o critério do IBGE.
Trata-se, numericamente, da cidade, no ABC, com maior presença negra, ocupando o nono lugar no ranking de cidades com população negra no Estado de São Paulo.
O nível de rendimento médio mensal de um homem negro, em São Bernardo, é de, em média, R$ 690,00, enquanto um homem branco tem um rendimento de R$ 1.409,00. No caso da mulher negra, a defasagem se repete para pior: uma mulher negra tem um rendimento médio mensal de R$ 445,00, enquanto que, no caso de uma mulher branca, o rendimento passa para R$ 847,00.
Mas, não é só em termos de ganho salarial que o homem negro perde. A professora Nadya Guimarães, da USP, em estudo recente, chegou a uma conclusão interessante a respeito das desigualdades de natureza racial na região de onde saíram as principais lideranças sindicais do país, inclusive o próprio Presidente da República. Um homem negro, de acordo com o estudo, tem um tempo médio de permanência no emprego de 50 semanas, enquanto que, para um homem branco, esse tempo chega a 70 semanas.
A tradução dos dados não exige grande esforço: o negro é o último a ser admitido e o primeiro a ser alcançado nos cortes de pessoal que as empresas realizam com a periodicidade costumeira.
Mas, as desvantagens não ficam por aí: em São Bernardo do Campo, a taxa de analfabetismo da população negra maior de 15 anos de idade chega a 8%; a taxa da população branca é 3%; a taxa de analfabetismo funcional da população negra chega a 20%, e a da população branca, a 11%. Embora represente 27% da população, sua participação na composição racial da população analfabeta funcional e analfabeta maior de 15 anos chega a 41% e 47%, respectivamente.
A intensidade da pobreza e indigência da população negra não é menos reveladora: 50% dos negros de São Bernardo do Campo – 97.558 pessoas, ou seja, quase 100 mil – vive abaixo da linha de pobreza, e 25%, abaixo da linha de indigência.
Nas demais cidades da região, a situação se repete de forma quase tediosa: em todas, o dado comum em todos os indicadores é a desvantagem dos negros. Por que será que isso acontece em uma cidade e numa região que, ainda hoje – apesar da conhecida evasão de muitas empresas -, é o coração industrial do Brasil?
Dependendo do ângulo de visão e de análise, muitas hipóteses serão levantadas. Alguns dirão que os negros tiveram pouco acesso à Educação, são menos qualificados para o trabalho, por isso ganham menos. Outros buscarão explicações na questão social, ou seja: por ocuparem o lugar mais baixo na pirâmide de exclusão, são, naturalmente, os que ganham menos. Outros ainda dirão envergonhadamente com seus próprios botões (porque o racismo, no Brasil, não se assume) que é isso mesmo, sempre foi assim, mas, claro, há exceções, existem negros que são gente muito boa e até merecem melhorar de situação, coitados!
Há um pano de fundo em todos os argumentos, independentemente de onde partam, da direita ou da esquerda, dos mais toscos aos mais sofisticados: todos evitam tocar na questão racial, todos cuidadosamente evitam a “herança maldita”, as seqüelas e as conseqüências, persistentes em todos os indicadores, dos 350 anos de escravismo e de uma abolição pela qual o Estado lavou as mãos em relação ao infortúnio da população negro-descendente brasileira.
Os governos e os políticos, de um modo geral, têm uma enorme dificuldade de compreender uma verdade histórica elementar: o nó da exclusão social, no Brasil, não é puramente econômico; tem uma interface racial que não pode ser ignorada porque aqui as seqüelas de 350 anos de escravismo permanecem plantadas.
Um outro estudo – desta vez do professor Rafael Guerreiro, do IPEA -, chamado Mobilidade Social dos Negros Brasileiros, é devastador em relação aos argumentos falaciosos que tentam negar – por ignorância ou má fé – o que está à vista de todos: os efeitos perversos do racismo e da violência racial nas relações sociais no Brasil.
Segundo Guerreiro, “a ideologia racista inculcada nas pessoas e nas instituições leva à reprodução, na sucessão das gerações e ao longo do ciclo da vida individual, do confinamento dos negros aos escalões inferiores da estrutura social, por intermédio de discriminação de ordens distintas, explícitas, veladas ou institucionais, que são acumuladas em desvantagens”. Trata-se da naturalização das posições de invisibilidade e de subalternidade reservadas à população afrodescendente. A institucionalização da violência racial, portanto, há séculos.
O ETERNO SUSPEITO
A violência racial praticada pelo aparelho de Estado é seletiva também na abordagem. O alvo é o mesmo: o negro é suspeito, a ponto de o senso comum racista consagrar o bordão: “negro correndo é suspeito, parado é ladrão”.
Uma pesquisa quantitativa realizada na cidade do Rio de Janeiro, em junho e julho de 2003, sobre experiências da população carioca com a polícia em situações de abordagem -, bem como um trabalho realizado pela Science, Sociedade Científica da Escola Nacional de Ciência e Estatísticas, sob coordenação de Denize Britz do Nascimento e José Matias Lima, confirmam o que todos já sabem.
Uma amostragem aleatória de 2.250 pessoas, com idades entre 15 e 65 anos, revelou o que não é segredo para ninguém: a ocorrência de revista corporal também varia sensivelmente conforme idade, gênero, cor e classe das pessoas abordadas.
Os jovens, os negros e as pessoas de renda e escolaridade mais baixas sofrem revista em proporções bem maiores do que os demais segmentos considerados.
É muito nítido que a polícia não só suspeita menos de pessoas brancas, mais velhas e de classe média que transitam pelas ruas da cidade, como tem maior “pudor” em revistá-las – procedimento fortemente associado à existência de suspeição, e via de regra, considerado humilhante.
A pesquisa revela que os auto-declarados pretos foram revistados em proporção significativamente maior do que os auto-declarados brancos – 55% contra 32,6%, relatam as professoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, em Elemento Suspeito, livro sobre a abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro, editado pela Civilização Brasileira.
Desnecessário acrescentar que o que vale para o Rio vale para São Paulo e para todos os demais grandes centros do país – Brasília, Recife, Salvador etc. -, onde a combinação de pobreza e raça constituem a senha para a morte.
SAINDO DO GUETO
Mas, se os indicadores são tão óbvios, monótonos até, de tão repetitivos, por que a sociedade não reage? Melhor dizendo: por que os setores organizados da classe média – inclusive aqueles que se declaram de esquerda – não reagem?
Afinal, é a mesma classe média capaz de sair às ruas em passeatas pela paz, quando um dos seus é atingido pela violência. A repercussão na mídia é imediata, e a comoção, instantânea. Entretanto, considera muito natural – quase um dado da realidade – quando jovens negros são alvos da chacina que acontece do outro lado da rua.
Na prática, há um divórcio entre a pobreza negra e a classe média branca – mesmo a que tem tendências progressistas -, o qual é mantido pelo mito e pela mentira da democracia racial, que representa uma espécie de senha para o silêncio geral diante da violência do racismo e da discriminação apontada nos indicadores.
O muro do apartheid é invisível, mas está lá. Não há dúvida quanto à sua eficácia para neutralizar a reação organizada dos setores da sociedade capazes de paralisar o ciclo de violência. É como se houvesse um pacto silencioso baseado no princípio de que “se não são dos nossos, não nos diz respeito”. O matar e o morrer passam a ser um desdobramento da própria vida e da violência em que vive, ou melhor, tenta sobreviver a parcela da população negra, que é alvo.
A violência que começa com a superexploração capitalista é potencializada e amplificada pelo Estado – na medida em que este é mero instrumento de reprodução de uma ordem da qual a violência é componente intrínseca -, tanto do ponto de vista econômico e social, quanto do ponto de vista racial.
Aliás, o mesmo Estado patrocinador e mantenedor da “desordem” organizada, não apenas pratica a violência racial direta, eliminando suas vítimas – em confrontos reais ou fictícios, não importa -, mas também reproduz um sistema montado para garantir a concentração de renda e a continuidade das desigualdades sociais, e pratica racismo institucional de forma sistemática.
ENCONTRANDO AS SAÍDAS
É curioso como as pessoas – mesmo acadêmicos renomados e setores considerados progressistas – acabam por esquecer que o escravismo, no caso brasileiro, não foi uma relação privada entre os senhores da Casa Grande e os negros e as negras seqüestrados do continente africano por quase quatro séculos.
Foi um negócio privado, sim, mas mantido, sustentado e avalizado pelo Estado por meio de Leis, como as Leis da Terra (1850), do Ventre Livre (1871), Sexagenário (1885) e Áurea (1888). Essa última foi o derradeiro ato de uma série de normas jurídicas adotadas para satisfazer as pressões inglesas – ou seja, as chamadas “leis para inglês ver”.
Não por acaso, a Abolição no Brasil, sacramentada por intermédio da Lei Áurea e concretizada quando a maioria da população negra escravizada já havia se evadido para os quilombos, não representou a inclusão de nenhum negro aos direitos básicos da cidadania; como escola, trabalho e moradia, dentre outros.
Ao contrário: a liberdade, para eles, representou a “rua da amargura”; o desamparo do desemprego, da falta de moradia, da favela – a nova senzala. Sobre os escombros da derrocada do escravismo, estruturou-se a República, em 1889. Como se vê, desde o princípio foi sempre a República de poucos – os mesmos.
A resistência do Estado brasileiro, ainda hoje, quase 120 anos depois da abolição do regime de trabalho escravo, em assumir suas responsabilidades por reparações, até mesmo com ações afirmativas e cotas (o Estatuto da Igualdade Racial e o PL 73/99 dormem um sono profundo nas gavetas do Congresso) é o indicador mais evidente de que a opção das elites dominantes continua a mesma: desejam seguir praticando a violência seletiva, que tem pobres e negros como alvos preferenciais.
Essa violência só cessará na medida em que os setores marginalizados da população – em especial, estes últimos – lograrem construir alianças capazes de enfrentar e superar a desigualdade social brasileira com seu componente de violência racial. Violência econômica, pela superexploração da força de trabalho; social, pela segregação dos guetos; e política, pela privação da cidadania, reduzida ao simulacro da participação em eleições viciadas.
Do mesmo modo que a pobreza, para os brancos, não é algo aleatório, mas sim produzido com a lógica e a racionalidade próprias do modo de produção capitalista, para a população negra, tampouco o é, pois é fruto da desvantagem que carrega pelos 350 anos de escravismo e mais 120 anos de uma modalidade de racismo que é, possivelmente, a pior existente no mundo: o racismo camuflado e hipócrita que jamais ousa dizer seu nome no Brasil.
Ou seja: os negros são pobres porque são negros, uma vez que carregam a desvantagem histórica de terem tido seus antepassados escravizados durante séculos.
Sem essa compreensão, será mantida a ideologia da democracia racial, que camufla e mascara (como é, aliás, o papel de qualquer ideologia), e que seguirá fazendo vítimas: as mesmas de sempre.
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