Nos últimos 20 anos, uma série de transformações no cenário político, econômico, tecnológico e no âmbito das relações humanas promoveu o surgimento de novos protagonistas no contexto econômico, político e sociocultural brasileiro, favorecendo novos olhares, percepções e trocas culturais. No campo da economia da cultura, o aperfeiçoamento dos modelos de gestão acompanhou estas transformações, exigindo empreendedores culturais cada vez mais aptos e preparados para lidar com estas mudanças. A pandemia veio trazer um novo paradigma, uma vez que a noção de tempo e espaço redimensionou nossas práticas face ao uso orgânico da Internet.
Em que pese o Brasil ser majoritariamente negro – dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 56% da população brasileira é negra (soma de autodeclarados pretos e pardos), o que equivale a 110 milhões de pessoas, que movimentaram R$ 1,7 trilhão em 2018, o equivalente a 24% do PIB –, esta população, no entanto, se vê sub-representada, resquício da herança colonial que estrutura o racismo a lá brasileira. Segundo o Instituto Locomotiva, 13% dessa população, aproximadamente 14 milhões, são de empreendedores e, segundo a PNAD/IBGE 2019, esses empreendedores representam 51% dos donos de novos negócios criados no Brasil, que movimentam aproximadamente 359 bilhões de reais anualmente. Parte significativa destes empreendedores atua na economia da cultural. Nesse ecossistema, em que a população negra é maioria no País, o empreendedorismo negro representa uma chance de modificar toda a estrutura social.
Da análise deste cenário ao surgimento de inciativas que impactem positivamente nas cabeças pensantes e no universo criativo, como um todo, é preciso um esforço de imaginação e muita vontade de mudar esse estado das coisas. Este esforço foi empreendido pela NEGRA ATIVA Produções, também responsável pela realização da Aceleradora Lanceiros Negros (https://lanceirosnegros.com.br/), um desdobramento do Festival Porongos, iniciativa criada em 2018 com o objetivo de impulsionar a cultura negrina no Sul do Brasil. Em 2021, o projeto recebeu financiamento da Natura Musical, via Lei de Incentivo à Cultura do estado do Rio Grande do Sul (LIC), aporte que favoreceu a realização de uma imersão de mais de 30 horas de atividades com profissionais de ponta.
A proposta consistiu na criação de um espaço de acolhimento e capacitação de 20 agentes culturais negros, negras e LGBTQIAP+, indígenas e afro-indígenas, – parcela da população que pouco frequenta os line-ups da maioria dos grandes eventos culturais do País – selecionados por meio de edital, em ambiente virtual (devido à pandemia), com inscrições gratuitas. Esses empreendedores culturais participaram de oficinas, mentorias coletivas e bate-papos em tempo real com profissionais da área da cultura. “A arte, para população negra, sempre foi e será uma das principais ferramentas de combate ao racismo e de denunciar preconceitos” afirmava a diretora criativa Thaise Machado, quando do lançamento do projeto, que tiveram em seu núcleo realizador os produtores Mauryani Oliveira e João Pedro Lopes.
O programa da Aceleradora foi elaborado a partir de expectativas dos próprios organizadores e buscou contemplar aspectos da subjetividade do público-alvo. “Muitas das minhas vivências contribuíram para a constituição da estrutura metodológica da Aceleradora”, analisa Thaise Machado. “Imageticamente, me coloquei novamente enquanto jovem empreendedora, que estava no início de carreira. Convidei a equipe a fazer esse mesmo exercício. Comecei a construir uma linha cronológica mental sobre como teria sido, se eu tivesse recebido informações relevantes de uma maneira ordenada. Foram essas trocas e esse olhar interno que possibilitaram a construção de uma estrutura consistente”, complementa.
Com a estrutura metodológica desenvolvida, foi possível visualizar a equipe de facilitadores. “As relações de conexão com a proposta do projeto e propósitos similares foram balizadores importantes para escolha dos facilitadores”, explica Machado. “A Lanceiros vem com uma base teórica/prática bem forte e potente, administrada por mentores e facilitadores incríveis, a fim de dar suporte e noções de como se profissionalizar na cena cultural, além de todo o acolhimento tanto da equipe quanto dos agentes”, reforça o produtor João Pedro Lopes.
“Gosto de dizer que a Aceleradora teve início por nós, enquanto equipe de direção e produção, pois foi possível partilhar e implementar dinâmicas de trabalho, de modo a ampliar o repertório da equipe e alcançarmos resultados relevantes. Por meio da ferramenta “Persona” foi possível desenhar e visualizar de forma objetiva as pessoas que gostaríamos de alcançar. Nosso foco foi chegar a agentes culturais negro e negras, indígenas, afro-indígenas, LGBTQIAP+ e/ou periféricas de vários segmentos, da esfera das artes/culturas, de forma a fazer um trabalho de base consistente, o que possibilitou a criação de uma estratégia de comunicação focada neste público. Tivemos um resultado muito satisfatório”, avalia a diretora criativa.
Estes resultados são reconhecidos pelos participantes. “Pude ter uma maior compreensão do mercado cultural do RS e sua potencialidade no campo artístico, em especial na área da música”, constata Athemis Fonseca, assistente de produção. “Tive uma percepção da carência de programas formativos e da falta de acessibilidade a programas de fomento a artistas e agentes culturais do RS, principalmente no que diz respeito a iniciativas voltadas para negres, indígenas, lgbtqiap+, periféricos e a juventude”, acrescenta. Segundo a produtora, a importância do projeto está em “potencializar agentes transformadores que estão à margem da sociedade e que devido às burocracias do sistema cultural encontram dificuldades para terem seus projetos e ações culturais fomentadas por políticas culturais e políticas públicas”. Para Gisamara, a Aceleração ajudou-a a expandir as ideias e as conexões. “Pude ver as várias perspectivas sobre a produção cultural de Porto Alegre e me senti super acolhida pela dinâmica”, comenta. “O jeito que a equipe da Lanceiros se comunicou com a galera, foi um bom começo para seguir com entusiasmo nos encontros seguintes”, afirma o poeta e produtor cultural Felipe Deds. Na percepção do ator e agente cultural, André de Jesus, as diversas dinâmicas e métodos favorecem “maior organização, foco, um processo do trabalho”, estimulando o participante a “querer aprofundar e implementar na vida”.
Para Mauryani Oliveira, o grande diferencial em produzir um projeto como a Lanceiros Negros se propôs foi a possibilidade de construir um ambiente seguro, onde foi possível dividir inquietações e agregar conhecimentos que impactaram na prática de trabalho dos selecionados. “Meu grande aprendizado enquanto profissional, certamente, foi ampliar e conhecer mais desses colegas de profissão, respeitar o tempo de cada um. Além de saber que não precisamos seguir modelos de trabalhos que são extremamente frustrantes, às vezes”, ressalta a produtora cultural.
Mudança de comportamento
Para o gestor de carreira artística, Tiago Souza, um dos facilitadores da Aceleradora Lanceiros Negros, a iniciava ajuda a desmistificar assuntos e/ou conteúdos que são caros à produção cultural. Ele diz que buscou criar uma linha que fosse conectiva, para que, ao final, os participantes tivessem um elo entre os conteúdos. “Esse é, para mim, o maior potencial que temos para criar fomento de crescimento da cadeia produtiva. As pessoas sabem fazer as coisas, o que elas não sabem, é a ordem de fazer. Por isso que o resultado aparece ou tardio ou quase não se entende no decorrer do processo quando se está tendo resultado; falta entender de Sistema e Organização”, avalia.
Para a especialista em Finanças, Dina Prates, que atuou como facilitadora no projeto, “foi muito importante para instrumentalizar o trabalho de pessoas pretas, que já possuem talento, criatividade e potencialidade de sobra, mas que, no entanto, recebem pouco ou quase nenhum investimento em formação. Digo, uma formação que impulsione no campo dos negócios, apresentando caminhos e orientações sólidas para fomentar o futuro”. A afirmação é corroborada pelo participante, Felipe Deds: “(…) gestão financeira é algo que todos devíamos aprender desde cedo, mas não nos é ensinado nem o básico na formação escolar. Foi bom ouvir os outros falando sobre, pude comparar com os projetos que sou envolvido, podendo enxergar a parte do dinheiro com outros olhos”.
A cantora, produtora e socióloga Nina Fola, também facilitadora no projeto, reconhece que o cenário cultural gaúcho precisa tomar outros rumos, aquecer, formar mais plateias e desenvolver uma economia criativa com os artistas locais. “Acredito que seja uma iniciativa muito positiva para o cenário preto gaúcho, tão carente de ferramentas e tecnologias profissionais sobre a produção artística e cultural. Então, ser um artista negre, querendo um público negre demanda pensar a produção cultural a partir desse paradigma cultural”.
A cantora Glau Barros, que buscou aprofundar seus conhecimentos em gestão cultural, diz que “a experiência foi extremamente importante pra que se possa conhecer etapas, processos e tudo que é necessário para uma gestão cultural de excelência”. Para ela, a apresentação das/dos diversos profissionais necessárias/os para se ter êxito no panorama atual da cadeia produtiva da cultura foi estratégica”.
Perfil dos participantes
A seleção de agentes culturais para participação na Aceleradora Cultural Lanceiros Negros buscou atender ao objetivo do projeto, que era democratizar o acesso ao conhecimento sobre produção cultural, de forma a proporcionar a emancipação de agentes culturais negros e negras, LGBTQIAP+, indígenas e afro-índigenas, atuantes no segmento cultural no Estado. Quanto ao perfil dos agentes culturais, 70% eram pessoas físicas; 15% pertencentes a coletivos; 5% oriundos de organizações sociais sem fins lucrativos; 5% de projetos sociais e 5% de empresas com fins lucrativos. Em relação ao gênero, 70% eram mulheres cisgênero; 25%, homens cisgênero e 5% não-binários. Quanto à orientação sexual, 55% eram heterossexuais; 30% bissexuais; 10% pansexual e 5% gays. Em relação à escolaridade, 45% possuem Ensino Superior Incompleto; 30%, Pós-Graduação; 15% Superior Completo e 10% Ensino Médio completo. Quanto a se considerar uma pessoa periférica, 50% moram em região periférica; 25% se consideram, mas não mora mais e 25% não moram em região periférica. Para Thaise Machado, os resultados da pesquisa confirmam o alcance dos objetivos iniciais do projeto e demonstram que há um público desejoso de mais iniciativas como estas.
*Silvia Abreu é jornalista, produtora cultural e integrou a equipe e facilitadores do projeto.