As políticas de ação afirmativa na educação é uma pauta dos movimentos negros desde seus primórdios no início da República, pois se entende que por meio desse aspecto da vida social, o da educação, é possível alcançar mudanças significativas na busca pelo respeito aos direitos da população negra e para o combate à discriminação racial. Contudo, a partir da efetivação das políticas de Ação Afirmativa e da legislação que prevê o combate contra o racismo, percebemos que a discussão de um modelo de educação antirracista vem ganhando campo. O período de grande expressão da inclusão dessa pauta na agenda do Estado ocorreu especialmente na primeira década do século XXI, com a instituição de governos mais abertos e comprometidos com os movimentos sociais, período político que ficou conhecido como Era Lula-Dilma (2003-2016).
O direito constitucional de igualdade tem sido fortemente debatido pelos movimentos negros, devido sua abrangência desequilibrada em igualdade para a diversidade étnica e social da população brasileira, sendo que, negros e negras contabilizando censitariamente o maior contingente populacional do país, permanecia massivamente nos extratos mais desfavorecidos em direitos e acessos.
A inserção dessas políticas no cenário nacional tem sido de grande importância, sobretudo à população negra, viabilizando reparos históricos e promovendo o acesso aos aparatos sociais, como direito à educação de qualidade e ascensão socioeconômica, causando impactos, muitas vezes positivos, para o combate à desigualdade social e refletindo sobre os marcadores sociais.
Enaltecemos aqui a trajetória das políticas de ação afirmativa e os impactos dessa agenda efetivamente na educação, trazendo para nossa discussão as alterações práticas nos currículos e nas práticas pedagógicas de escolas do Estado. Esse que no ano de 2005 foi estatisticamente um dos estados com a maior população negra do país e que está ainda entre os primeiros. Outros dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE revelam os índices de desigualdade, por exemplo, declaram que a população negra está nas periferias, que tem menos escolarização, está em situação de desemprego e que é alvo das mortes violentas no Estado.
Entendemos que a análise desse percurso rompe com o discurso histórico de igualdade liberal que de longa data favoreceu princípios burgueses e de hierarquização étnico-racial, buscando assim o diálogo com as premissas das políticas sociais que se desdobram aos direitos da população negra.
As políticas públicas educacionais são recentes no contexto educacional brasileiro, pois, para um país forjado nas diretrizes coloniais, agrícolas e escravocrata em sua formação histórico social e política, não seria a educação alvo de prioridades, nem mesmo seria esta necessidade popular aos cidadãos. O acesso à educação nos primórdios da nação, no período colonial seria apenas aos que pertenciam à classe dominante e chega através dos jesuítas que tinham propósitos ligados ao Clero. Tinham como propósito primordialmente em catequizar e doutrinar aos ideais coloniais, nativos dessa terra tropical e negros escravizados, também era tarefa desses educar os filhos dos colonos.
Com a reforma pombalina, que expulsa os jesuítas em 1759, o sistema educacional passa a não mais servir aos mecanismos da Igreja e passa a difundir interesses capitais da Coroa, com a chegada da família Real em 1808 há um impulso no desenvolvimento educativo e cultural, inserindo a educação superior e com isso se exclui a classe dominada e os escravizados que não eram compreendidos como cidadãos.
No ano de 1824 se dá a primeira Constituição que delimita acesso aos cidadão a escola primária e gratuita, mais adiante em 1891 com a descentralização do ensino, iniciativas privadas evoluem, o que elitiza a educação, já nesse período a educação de qualidade era destinada aos mais abastados, enquanto o ensino aos cidadãos pobres se torna deficitário.
Essa estrutura política social manteve as relações étnico-raciais em uma pirâmide social, onde o branco está no topo. A estrutura político econômica e jurídica, justificada pela ideologia da classe dominante, moldou a História e a Cultura do país em seus aspectos raciais e econômicos, impedindo que negros e negras mesmo no pós abolição, participassem plenamente da formação social, como realça Abdias Nascimento: “em verdade, em verdade, porém, a camada dominante simplesmente considera qualquer movimento de conscientização afro-brasileira como ameaça ou agressão retaliativa” (NASCIMENTO, 2017, p.94).
No período conhecido como Primeira República não houve grandes alterações, a educação foi descentralizada, fazendo com que houvesse mais desigualdades em relação principalmente ao financiamento. A necessidade de que houvesse mais alfabetizados por interesse do direito ao voto, fez com que, sobretudo, São Paulo investisse na luta contra o analfabetismo.
Com a Revolução de 1930 ampliou-se a difusão sobre os aspectos de necessidade e ampliação da educação, criando- se o Ministério da Educação e as Secretarias da Educação dos Estados. A educação se ilumina com os ideais do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que já vinha se formando desde 1920, com propósitos de solucionar os problemas educacionais do país. Os propósitos da reforma educacional eram intensos.
A campanha pela educação nacional é a grande obra, e a de maior alcance, realizada por homens dessa geração, em cujo grupo sólido vieram incorporar-se, identificadas pelos mesmos ideais, outras figuras eminentes. Eu tive a fortuna de ver reunidos, um dia, numa obra comum, em convívio de todas as horas, alguns dos vultos mais representativos dessa nova mentalidade que amadureceu com a minha geração. O que se viveu é como o que se espalhou; não se pode mais reunir. Mas, os grandes ideais que nos uniram continuam a inspirar o pensamento e a ação de todos esses educadores que as circunstâncias afastaram, mas não tiveram forças para dividir e abater. Sucedem-se, de fato, em todos os terrenos, as conquistas dos novos ideais de educação. O cerco das velhas instituições escolares vai sendo cada vez mais apertado. Abalou-se a rotina; desacreditaram-se os velhos princípios; desintegraram-se sistemas rígidos; despertaram-se vocações; rasgaram-se novas perspectivas e se impuseram normas modernas de educação. É toda uma nova política de educação que se introduziu, no Brasil, e diante de cujos princípios e de cuja atividade já capitularam os redutos mais resistentes. (AZEVEDO [et.al], 2010, p.22)
O resultado foi profícuo, surgem a partir daí diversos projetos e debates que redirecionaram as diretrizes nacionais de educação, mas sofreram supressão no período posterior. No Estado Novo o foco do ensino servia a formação profissionalizante, descaracterizando ideologias de qualidade às populações subalternizadas, depois passou por um período de mais incentivo do Estado no governo populista, ainda assim visando uma educação para o trabalho. Surge nesse período a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a luta por uma escola pública de qualidade se intensifica como direito constitucional de toda a população.
No regime ditatorial que segue, a educação sofre com a repressão e forte fiscalização do Estado, é voltada à profissionalização com a educação tecnicista e sua máxima seria tornar pessoas em trabalhadores passivos visando geração de benefícios capitais. Com a reforma democrática a partir de 1985 e a nova Constituição Federal de 1988 e seus princípios democráticos, a educação se desenvolve em aspectos legais, baseadas nos direitos e deveres dos cidadãos. Surge então uma série de diretrizes e parâmetros a fim de democratizar e difundir uma educação de qualidade a todos, dá se a Lei de Diretrizes e Bases em 1996 que está vigente até os dias atuais.
As leis educacionais de ação afirmativa vêm para agregar e ampliar o acesso aos direitos da população que foi historicamente marginalizada no processo de formação social e econômica do país, já que não foram geradas medidas de reparo à exclusão dessa camada populacional.
Deve-se destacar, entretanto, que o Brasil não criou uma política de integração social entre os negros libertos com os demais membros de sua população, razão pela qual fez nascer um problema histórico de desigualdade social, que persiste até os dias atuais. Ocorre que os negros, recém libertos, não receberam qualquer oportunidade de educação, moradia ou trabalho. E, para piorar a situação, houve um forte incentivo governamental, entre os séculos XIX e XX, de estímulo à imigração europeia, a fim de que os postos de trabalho, deixados pelos negros, fossem preenchidos por trabalhadores brancos, remunerados. (BAEZ, 2017, p. 6)
As políticas de ação afirmativa se caracterizam por medidas de âmbito privado ou pública que visam a restauração das desigualdades causadas por essa história de desigualdade racial e outras desigualdades a nível social de discriminação que impedem a “concretização do princípio constitucional da igualdade material” (BARBOSA, 2001, p.132), sobretudo aos cidadãos e cidadãs não brancos e brancas .
O Estado de São Paulo, por exemplo, em 2010 contabilizava o percentual de 37% de população negra segundo dados do IBGE e em sua maioria residiam em áreas periféricas, quando estudavam, frequentavam majoritariamente escolas públicas, a renda média era de em média cinco mil reais menor em relação à população branca, também o nível de escolarização a nível superior era de 15,6% da população negra e 84,4% da população branca, em relação aos homicídios os homens negros estatisticamente foram alvos 61,5% e homens brancos os 38,5% do total, ressaltamos que, a partir desses dados concordamos com Joaquim Barbosa ao afirmar.
Ao Estado cabe, assim, a opção entre duas posturas distintas: manter-se firme na posição de neutralidade, e permitir a total subjugação dos grupos sociais desprovidos de voz, de força política, de meios de fazer valer os seus direitos; ou, ao contrário, atuar ativamente no sentido da mitigação das desigualdades sociais que, como é de todos sabido, têm como público alvo precisamente as minorias raciais, étnicas, sexuais e nacionais. Com efeito, a sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéias chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas maneiras: neutralidade em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera íntima das pessoas. (BARBOSA, 2001, p.133)
Cabe observarmos o resultado onde as políticas de ação afirmativa vêm influenciando a gestão e a prática pedagógica a partir do período que chamaremos aqui de Era Lula-Dilma até a atualidade em que há tentativas de deslegitimação dessa políticas a nível nacional.
A Educação Formal brasileira, concebida a partir da estrutura sócio-histórica e econômica do país, desfavorece a população negra. Nilma nos leva a refletir sobre as características da complexidade em que se gerou essa Educação. Nesse panorama de diversidade e desigualdades, ela faz referência a pesquisas que ao longo dos anos reforçam dados que demonstram as barreiras de uma sociedade racista que contiveram negros e negras ao acesso do conhecimento. É imperativo que haja mudança na práxis pedagógica, em prol do desenvolvimento de um ensino equânime e antirracista, no sentido do combate às mazelas da discriminação e do preconceito racial. Nilma nos alerta que:
O aprofundamento dessas questões aponta para a necessidade de repensar a estrutura, os currículos, os tempos e os espaços escolares. É preciso considerar que a escola brasileira, com sua estrutura rígida, encontra-se inadequada à população negra e pobre deste país. Nesse sentido, não há como negar o quanto o seu caráter é excludente. (GOMES, 2001, p. 86)
Exclui, pois, a ideologia racista, que feriu os currículos com a discriminação racial e acumula mazelas na História da Educação brasileira. Ainda que o movimento negro e as lutas sociais tenham alcançando com muitos esforços algum avanço na mudança educaional de maneira legal, a prática cotidiana carece de alguma espécie de fiscalização e crítica para que a manutenção dos ganhos das políticas de Ação Afirmativa possam ampliar seus efeitos de modo material em grandes escalas.
Paula Anunciação- professora da rede estadual de São Paulo, mestra em Educação, assistente do centro de memória do Geledés
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