“Sonhei,
que estava sonhando um sonho sonhado,
Um sonho de sonho, magnetizado...”
Martinho da Vila (Samba enredo do GRES Vila Isabel)
Enviado por Amauri Mendes Pereira via Guest Post para o Portal Geledés
Ainda tinha muito cabelo quando aprendi que havia nações europeias comandando o mundo. E que lá havia tudo de bom: civilização, arte, filosofia, tecnologia, beleza, LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE… Ao contrário daqui: Américas do Sul, Brasil, Rio de Janeiro, Zona Norte, favela…
Depois foi o tempo de tentar entender: como eram tudo de bom, se bolsilivros, filmes, alguns gibis, partes dos livros didáticos, mostravam guerras terríveis – duas em menos de quarenta anos: mortes sem fim, terror, fomes, desgraças e destruição, covardias, embora também heroísmos?
Adiante foi o tempo da dor e da raiva, mas também de encantamentos: As agruras do tráfico descritas por Ki-Zerbo; “Como a Europa subdesenvolveu a África”, de Walter Rodney; a densidade total dos escritos e a imagem martirizada de Fanon, ainda mais com o prefácio de Sartre; o “Discurso sobre o Colonialismo”, de Cesaire; “O retrato do colonizador, precedido do retrato do colonizado”, de Albert Memi; o “Vietnã segundo N’ Guyen Vo Giap” (o maior general do século XX!!!!), e a vitória em Dien Bien Phu; “The Colour Courtain”, “Escucha, Hombre Blanco”… Me faziam sentir Richard Wright na Conferência Afro-Asiática de Bandung; Amilcar Cabral!! Amilcar Cabral !!! Agostinho Neto!!!! Mondlane, Samora Machel!! Mandela e a “Liga da Juventude” contra o apartheid; A revolução Cubana, Fidel e Chê Guevara e a Tri-Continental de Havana !!!
E veio, então, o tempo de queda dos cabelos e de tentar compreender e explicar: as doutrinas do racismo científico, os mistérios e promessas do iluminismo e da ciência social-pai e mãe do racismo, do colonialismo e do imperialismo; insatisfações-indecisões-rejeições de “revolucionários” europeus face aos processos de descolonização; o restabelecimento dos poderes (neo) coloniais em África sustentados pela OTAN e pelo sonho da supremacia natural-eterna do homem branco, cristão, do hemisfério norte…
Era fácil, então, lutar! Assim como Martin Luther King, Ângela Davies, Malcom X, o Black Phanter, Garvey, Du Bois, África estava para nós (Movimento Negro brasileiro), como Europa estava para eles homens brancos, teóricos “sociais” . Nós construíamos a sociedade e liberdade-igualdade-fraternidade (do jeito que dava) ; eles, formalizavam a institucionalidade do Estado, a ordem e progresso”, os sentidos de nação e de identidade nacional brasileira…
Foi difícil e bom demais escrever e publicar os “Cadernos de Descolonização da Nossa História: Zumbi, João Cândido e os dias de hoje”, e vender tudo em 1980… Mas tão ruim e decepcionante desencontrar, fora do Movimento Negro, parceir@s ) raras exceções para incrementar tantas! lutas! Urgia descolonizar pensamentos práticas sociais e políticas. Era árduo encaixar”proposições que tocassem o problema do racismo em estratégias e ações coletivas em partidos políticos e lutas sociais!
Para nós não foi surpresa, portanto, a resposta européia à tragédia atual de homens e mulheres que fogem de guerras e misérias através do Mediterrâneo : o racismo, xenofobia e intolerâncias correlatas, toda noite e dia, há anos. Tecnologia ali salva quando quer, e mostra o escândalo em tempo real…
E agora, uma intelectualidade frustrada sofre com o início do fim da idealização “Europa” – o Reino Unido está fora!
Surpresa para eles, cujo exercício do poder alimenta desigualdades, mas também sonhos-idealizações insensatas. Tant@s entre eles e elas se esmeram em referenciais históricos, simbólicos, estéticos, e análises bem estruturadas sobre os dilemas nacionais brasileiros!… Foram capazes de eliminar a seca e fome no sertão nordestino, o perene genocídio contra os povos indígenas, as favelas e lugares pretos e pobres do Recife, de Salvador, do Rio de janeiro, de São Paulo, de todo lugar nesse Brasil sem fim?
Oh, a nostalgia! Tanto de classicismos europeus, quanto da identidade nacional brasileira – vão-se idealizações, desde sempre insustentáveis, hoje “meladas” pelas cotas, por reclames de igualdade, por construções subterrâneas, insurgentes: sentadas ou não à mesa da institucionalidade, olho-no-olho, “sem-dor-sem-medo”!
Alguns entre eles-elas vinham-vinham “entendendo”? Perderam, mais uma vez, para si mesm@s e para @s que ‘não têm olhos de ver’, atropelando os esforços de negociação do Lula presidente – Incapazes de extirpar o ranço de supremacia entranhado até os ossos.
Já não é tão fácil lutar! Caminhemos:
1 – Uma elite, intelectualizada ou não, frustrada em um sonho insensato e envelhecido – sem rumo. Nada além do propósito de mais poder material, salvando o que puder dos sonhos-idealizações que restam!
2 – Nós, para o que estamos construindo, não precisamos do ódio ou do escárnio. Mas de investir em perspectivas de superação de distâncias, capazes de inaugurar novos sentidos de democracia e justiça social no Brasil. E de estar atentos a eles e a nós mesm@s, como estava Richard Wright, que nos dedica seu livro:
“A mi amigo Eric Williams, Primer Ministro del gobierno de Trinidad y Tobago,
y dirigente Del Movimiento Nacional Del Pueblo,
y a la
trágica elite ocidentalizada de Ásia, África y las Índias Ocidentales…
Los solitários extranjeros que vivem una existencia precaria
em las escarpadas orillas de muchas culturas;
hombres hacia quienes se manifesta desconfianza, a los que no se entiende,
a los que se calunia y critica, desde La izquierda y La derecha,
por los cristianos e paganos;
hombres que acarrean sobre sus frágiles e infatigables hombros
lo mejor de dos mundos y que em médio de la confusión y el estancamiento,
buscam com desesperación um hogar para sus corazones,
um hogar que, cuando lo encuentren, podrá serlo
para el corazón de todos los seres humanos.”[1]
[1] Dedicatória do livro “Escucha hombre Blanco”! Editorial Sudamericana. Buenos Aires. 1959