Adriana Mello, juíza: ‘A mulher é morta por ser mulher’

Com doutorado em Barcelona, carioca expert em casos de violência doméstica defende incluir no Código Penal o crime de feminicídio, tipificado em vários países

“Tenho 44 anos, sou casada com um juiz e mãe de duas filhas. No doutorado pela Universidade Autônoma de Barcelona, estudo 38 casos de homicídios de mulheres no Rio num período de dez anos. Elas foram mortas quando quiseram romper a relação. O Brasil é hoje o sétimo país do mundo em homicídios de mulheres”

Conte algo que não sei.

Em 1830, o Código Penal em vigor no Brasil previa o femicídio. O marido podia matar a mulher flagrada em adultério e o homem com quem ela estava. Se esse homem tivesse um cargo alto, podia não ser punido com a morte. Já se fosse uma pessoa do povo, morria.

O que é femicídio?

O assassinato de mulheres em razão do gênero, pela condição de mulher. Ocorre basicamente no âmbito doméstico e familiar. A mulher é morta por ser mulher. O femicídio é o resultado de um histórico de violência que aquela mulher vivenciou. No meu doutorado, estudo 38 processos de homicídios de mulheres no Rio, de 2000 a 2010. Elas morreram quando quiseram romper com a relação.

De onde vem o conceito?

A socióloga americana Diana Russell usou o termo femicídio (femicide, em inglês). Depois o tema começou a ser estudado no México, por causa de crimes contra garotas adolescentes em Cidade Juárez. Marcela Lagarde, a antropóloga mexicana, adotou o nome “feminicídio”.

Qual a diferença?

O femicídio era o assassinato de uma mulher por ódio ou misoginia (aversão a mulheres), com mortes cruéis, partes da face e seios destruídos. No México, foi acrescentado outro componente, a tolerância do Estado com esses crimes, o que garante a impunidade. Não se buscava culpado. Houve comoção no México quando cinco corpos de garotas foram encontrados. Elas eram violentadas, torturadas e mortas. O México foi condenado na OEA a dar reparação às famílias das cinco meninas.

Onde já está tipificado?

No México, vários estados tipificaram o feminicídio. Também na Guatemala, em El Salvador, em Honduras, na Costa Rica. O Chile tipificou o femicídio íntimo (cometido por conhecidos). Peru, Bolívia e Venezuela tipificaram.

 

Por que tipificar se o homicídio está no Código Penal?

O que não se nomeia não existe. Se você tipifica, pode melhorar os registros, criar políticas públicas. As nossas mulheres estão morrendo, e isso não está sendo discutido. Um homicídio de mulher é muitas vezes tratado como um crime passional. A pior coisa que se pode dizer de um homicídio de uma mulher é que ele foi passional. Porque você desqualifica, diz que foi na ira, na raiva, e não é. O feminicídio é um processo de violência.

Não é algo inesperado, então.

Ela já vem sofrendo, há sempre rastro de violência que culmina com morte. Enquanto a gente não colocar isso no Código Penal de forma clara, esse fenômeno persistirá, invisível. “Ah, foi crime passional, matou porque estava com ciúmes.” A tendência é desacreditar a mulher. “Também, ela estava à noite na rua. Olha, ela usava uma roupa indecente. Ah, é mulher de malandro, apanhou e nunca teve coragem de sair da relação.” A pena poderia ser a mesma do homicídio qualificado, mas registrado como feminicídio. Nem toda morte de mulher é assim. Assalto comum? Tiroteio? Não é. É facílimo de identificar.

Femicídio ou feminicídio?

Para mim, tanto faz, embora, na academia, se faça distinção. No Brasil se debate o termo “feminicídio”, com uma dimensão que diz respeito a nós, à tolerância do Estado com os crimes. Você me pergunta por que tipificar. Para que os crimes não fiquem impunes.

 

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