África do Sul: Reparação ou preconceito?

Por: Gustavo Müller

CIDADE DO CABO, África do Sul – A Universidade de Cape Town era, uma vez, uma cidadela do privilégio branco, nas encostas do majestoso Devil’s Peak. No auge do apartheid, ela aceitou alguns poucos alunos negros ou mestiços que foram banidos dos dormitórios do campus e proibidos de realizar aulas de anatomia com cadáveres brancos na faculdade de Medicina.

A melhor universidade da África do Sul é, agora, visivelmente multirracial. Mas isso também está envolvido em um debate profundo sobre o quão longe as ações afirmativas devem ir para curar as feridas de uma história opressiva, ecoando em conflitos similares ocorridos nos EUA, onde meia dúzia de estados proibiram o uso de critérios raciais nas admissões pra universidades públicas.

“Estamos aqui porque somos negros ou porque somos inteligentes?”, questionou Sam Mgobozi, 19 anos, um estudante negro de classe média, que frequentou uma escola de primeira linha em Durban e que considera as ações afirmativas ofensivas, mesmo concordando que os candidatos negros pobres possam precisar delas.

A Universidade de Cape Town teria supostamente resolvido esse debate no ano passado, quando seus professores – dos quais 70% são homens e brancos – apoiaram uma política de admissões que deu preferências, baseada nas categorias raciais do apartheid, para negros, mestiços e estudantes indianos.

Ao invés disso, o desconforto com a atual abordagem se espalhou durante o ano passado em acaloradas discussões nas páginas editoriais dos jornais e em plataformas de debate formais. Dezesseis anos após a ascensão política da maioria negra, o dilema da universidade ressoa através de uma sociedade em conflito sobre a melhor forma de conseguir a reparação racial, seja nas salas de reuniões corporativas ou nas salas de aula.

O professor Neville Alexander, um sociólogo marxista, que foi classificado como mestiço durante o apartheid tem suscitado o debate no campus com acusações de que as ações afirmativas traem os ideais de “não-racialismo” pelo qual muitos lutaram e morreram durante a longa batalha contra o apartheid. O professor Alexander, que passou uma década preso em Robben Island com Nelson Mandela, insiste que a Universidade de Cape Town, que é pública, deve resistir à pressão do governo para usar padrões de referência raciais como forma de determinar o quão boa é a desempenho da universidade. “O governo durante o regime do apartheid fez o mesmo e nós lhes dissemos para irem para o inferno”, disse ele em um debate informal no campus.

O defensor das ações afirmativas no campus é Max Prince, vice-reitor, que foi detido como um ativista anti-apartheid, em meados da década de 1970. Dr. Prince, que cresceu com os privilégios de uma criança branca, sustenta que as preferências baseadas nas classificações raciais apartheidistas representam um meio para ajudar aqueles que foram prejudicados por aquele sistema a ganhar oportunidades únicas de ensino.

A universidade tem uma política declarada de admissão de negros que tenham pontuações significativamente menores que os brancos nos exames, mas os brancos ainda superam os negros em uma proporção de quase dois para um – 45% de brancos contra 25% de negros – entre os 20500 alunos sul-africanos da universidade. Na África do Sul, 79 por cento da população é negra e apenas nove por cento é branca.

Mesmo com diversos programas de educação compensatória no campus, como forma de ajudar os alunos menos favorecidos, as estatísticas da universidade mostram que pouco mais da metade dos alunos negros se formou em cinco anos, nos últimos anos, enquanto quatro em cada cinco dos alunos brancos completaram seus estudos em cinco anos. “Estamos recebendo o melhor aqui, e o melhor é lutar”, disse o vice-reitor adjunto Crain Soudien.

A situação é ainda pior no ensino superior do resto do país. Pesquisadores descobriram que em engenharia, direito, ciências e gestão de negócios, apenas um terço, ou menos, dos alunos negros conseguiram obter os diplomas em cinco anos. Os esforços do país para criar profissionais negros permanecem prejudicados pela falta de escolas públicas em áreas rurais pobres e em cidades negras, o que o governo pós-apartheid se mostrou incapaz de resolver.

As classes sociais são outro fator complicador. Há grandes disparidades de renda entre brancos e negros sul-africanos, mas também entre os negros. O mercado de trabalho recompensa diplomados das melhores universidades – brancos e negros – enquanto pune os pouco educados, que são, majoritariamente, negros.

Estudantes e professores se perguntam se as crianças negras das classes média e alta devem continuar a receber a mesma preferência nas admissões que os alunos negros pobres. A universidade está desenvolvendo medidas não-raciais de desvantagem – por exemplo, se os pais do candidato freqüentaram a universidade, ou mesmo a qualidade das escolas freqüentadas pelos próprios candidatos.

Mas a universidade só tem, no momento, pessoal o suficiente para basear as decisões de admissão da maioria de seus alunos em seus escores em um exame nacional para alunos de escolas secundárias e nos critérios apartheidistas de classificação racial.

Mesmo quando atenuantes para as disparidades socioeconômicas são desenvolvidos, afirma o Dr. Prince, a raça ainda deve ser considerada. Ele estima que cerca de metade dos mais privilegiados candidatos negros não atingiria o ponto de corte sem as preferências raciais. Em tal situação, segundo ele, os brancos vão dominar os escalões altos da sociedade, enquanto muitos negros desfavorecidos enfrentariam o fracasso, reforçando os estereótipos.

Mesmo nas famílias negras mais prósperas, disse ele, os pais muitas vezes freqüentaram escolas inferiores, e seus filhos não se saem tão bem no exame nacional como os alunos brancos, cujas famílias têm educação universitária há gerações.

Mas o professor André du Toit, que ensinou a história do pensamento político sul-africano para gerações de estudantes estadunidenses, discordou, dizendo que a questão central sobre o que ele chamou de “versão elitista das ações afirmativas baseadas em critérios raciais” da universidade é se elas vão reproduzir uma sociedade elitista.

Em “The Next 25 Years”, um livro de acadêmicos estadunidenses e sul-africanos de artigos sobre as ações afirmativas, o professor du Toit escreve que, como candidatos negros cada vez mais vêm das melhores escolas e de famílias abastadas, as ações afirmativas criariam “uma justificativa ideológica para privilegiar os grupos elitistas negros estabelecidos, em detrimento da maioria africana”.

Em uma tarde recente, estudantes se encontravam sentados ao sol em uma escadaria que ligava o Jamesosn Hall ao Devil’s Peak. Eles pareciam ser uma realização multirracial da nação arco-íris de Nelson Mandela – e, de muitas maneiras, de fato eram.

Mas no campus, onde os alunos locais se preocupam se suas famílias têm o que comer, enquanto os alunos ricos passeiam em carros esportivos, muitos sentam em grupos, divididos não só pela raça, mas pela riqueza.

“Os alunos mais populares do campus da U.C.T. são divididos em dois: a elite negra e a elite branca”, disse o Sr. Mgobozi, filho de um gerente de vendas corporativas e ex-professor de inglês.

Como outros prósperos estudantes negros entrevistados aqui, o Sr. Mgobozi é profundamente ambíguo em relação às ações afirmativas. Ele disse que teria entrado na universidade sem elas e explica: “os alunos negros trabalham extremamente duro só para provar que nós estamos aqui com o mesmo mérito que os nossos colegas brancos”.

Os defensores mais eloquentes de preferências raciais são estudantes oriundos de realidades de grande privação. Sem as ações afirmativas, Lwando Mpotulo, 23 anos, nunca teria sido aceito para estudar medicina aqui. Sua mãe morreu quando ele tinha 15 anos e seu pai ficou desempregado grande parte de sua infância. Ele foi para a escola em Khayelitsha, um enorme subúrbio negro de meio milhão de pessoas, a 15 milhas e um mundo de distância do rico coração da Cidade do Cabo. O Sr. Mpotulo vivia ali em uma casa minúscula e decadente, que por vezes não tinha eletricidade.

Sua pontuação no exame nacional do ensino secundário – C em ciências, biologia e inglês, um B em matemática e um A em Xhosa, sua língua materna – foram muito menores do que os A que os estudantes brancos precisam alcançar, mas uma conquista extraordinária em uma cidade onde muito poucos foram admitidos na universidade.

O Sr. Mpotulo estava na Cidade do Cabo quando recebeu a notícia de que tinha sido aceito e, radiante, correu para o campus da faculdade de medicina. Entretanto, seus dois primeiros anos foram um fracasso humilhante. “Eu me senti muito menor”, disse ele, triste. Ele nunca tinha tido um professor branco antes e, mesmo seu professor de inglês da escola falava em Xhosa às vezes em aula.

Mas a universidade proporcionou-lhe cursos extensivos e especializados, adaptados para alunos com dificuldades, e sessões semanais de terapia. O Sr. Mpotulo também mergulhou fundo em si mesmo. Recentemente, ele desenhou a árvore genealógica da família dependente dele.

“Essas são as pessoas com quem eu me preocupo”, disse ele gravemente. “Eu tenho que, de alguma forma, ter sucesso. Se eu desistir, eles não terão, literalmente, ninguém empregado em casa”.

Agora ele está confiante que se formará na faculdade de medicina, mesmo demorando oito anos, ao invés dos seis habituais. Ele está considerando uma carreira na saúde pública. Ele acredita que a morte da sua mãe, de forma súbita, aos 30 anos, poderia ter sido prevenida se ela tivesse recebido atendimento médico decente.

Na sua própria experiência de vida difícil, disse ele, o legado de séculos de dominação branca se manifesta.

“Eu simpatizo com um estudante branco, que vai muito bem, e que não pode se tornar um estudante aqui por causa das ações afirmativas”, disse ele, “mas eu acho que é um mal totalmente necessário”.

Celia W. Dugger

Tradução de Guilherme Ziebell

 

Fonte: Correiointernacional

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