Afrofuturismo: conceito que ganhou projeção com ‘Pantera Negra’ se alastra pelas artes

Movimento mescla tradições africanas com ficção científica e fantasia para rever o passado negro e criar novos ‘amanhãs’

por Jan Niklas e Silvio Essinger no O Globo

Obra da série Gênesis, do artista do Zimbábue Kudzanai Chiurai Foto- Goodman Gallery – O Globo

Torres espelhadas, carros voadores, cenários high-tech e um povo moderno, estiloso e negro. A visão utópica de Wakanda, nação fictícia do filme “Pantera Negra”, um dos grandes sucessos de bilheteria deste ano, popularizou o conceito de afrofuturismo.

O movimento, que mescla tradições africanas com ficção científica e fantasia, alcançou o pico de buscas no Google graças ao blockbuster do herói. Pois agora, o futuro afro parece ter chegado: uma série de lançamentos e eventos vem aquecer esse universo, com manifestações na África e até onde foi sua diáspora.

Nesse caldeirão criativo está a aguardada exposição de Basquiat, em cartaz no CCBB do Rio. Está, também, o lançamento recente no Brasil do best seller “Filhos de sangue e osso” (Rocco), em que a americana de origem nigeriana Tomi Adeyeme usa a mitologia iorubá como fio condutor para contar a história de um jovem que luta contra a opressão de seu povo. Além disso, a sétima edição da Festa Literária das Periferias (FLUP), que acontece entre 6 e 11 de novembro, dará destaque a novas narrativas negras. Mas, afinal, o que une esses amanhãs?

O pesquisador e escritor Fabio Kabral afirma que o processo começa por uma ressignificação da História africana, ainda dominada pela narrativa colonialista.

— Precisamos recriar um passado que nos foi negado, transformar o presente que nos é imposto e projetar um novo futuro — diz o autor, que lança em março de 2019 o livro “A cientista guerreira do facão furioso” (Malê), continuação de “O caçador cibernético da rua 13”.

A busca por esse “futuro do pretérito” para transformação estética aparece em obras como as do artista do Zimbábue Kudzanai Chiurai (que abre este texto) . Na série “Genêsis”, colonizador e colonizado aparecem sob um novo prisma. É a mesma provocação que se sente na música do Senzala Hi-Tech, grupo paulista que soltou neste ano o clipe com temática afrofuturista “Em transe”, que explora a relação homem, comunicação e tecnologia. No começo do ano que vem, a banda mergulha mais no assunto e lança o disco “Arte, amor e desobediência”.

Antonio Junião, integrante do Senzala Hi-Tech, dá sua visão do movimento:

— Ele caminha e se molda de acordo com o posicionamentos de negros e negras que estão na África ou são filhos da diáspora.

A tendência está presente também no som da americana Camae Ayewa, que se apresenta quarta-feira no festival Antimatéria 2018, na Audio Rebel, em Botafogo. Trazendo seu projeto musical Moor Mother, ela dá uma visão abrangente:

— O afrofuturismo é uma lente para ver o mundo pelos olhos de pessoas marginalizadas, expulsas por essa guerra de classes e pelo colonialismo em todo o mundo.

Para esses artistas, colocar a vivência das pessoas negras como modo de interpretar o mundo é a chave do processo. É o que propõe, por exemplo, o baiano Ayrson Heráclito, atualmente com exposições no Museu de Arte do Rio e no Kunst Museu de Frankfurt, na Alemanha. O autor imagina novos futuros mergulhando na África Pré-colonial, a partir de referências ainda preservadas nos terreiros de candomblé da Bahia.

— Formas de ler o futuro através da água, dos campos e do ar são outros modos de se pensar a ideia de tempo — diz Ayrson.

bra ‘A história do futuro O Baobá’, da exposição ‘Senhor dos caminhos’ Foto- Divulgação – O Globo
Obra ‘A história do futuro O Baobá’, da exposição ‘Senhor dos caminhos’ Foto: Divulgação

Lembra de Wakanda, país do Pantera Negra? Pois, para os afrofuturistas, imagens enraizadas no imaginário como sendo “futurísticas”, em que a tecnologia domina a paisagem, também devem ser “enegrecidas”. E isso não significa apenas inserir personagens negros nessas narrativas.

Segundo a americana Alondra Nelson, professora de Sociologia de Columbia e organizadora do livro “Afrofuturism”, representações da ciência e tecnologia geralmente colocam negros como “quebra-molas” que freiam o caminho do progresso. O afrofuturismo pode oferecer uma via possível fora dessa “matriz de desigualdade”.

— Novos imaginários audaciosos, produzidos por pessoas negras, devem nos situar no tempo, no espaço e na política em outros termos — ela diz. — Essa perspectiva crítica deve reconhecer a violência contundente, mas assumir o futuro para si.

Feitiçaria e tecnologia

Multiartista e pesquisadora de afrofuturismo, a mineira Zaika dos Santos lembra que existe hoje uma conexão muito maior entre vivências afrobrasileiras, globalização e cibercultura:

— Na cultura geek e nerd, a presença de jovens negros é muito forte. Nesse campo, em que arte, inovação e tecnologia se unem, surgem novas narrativas para desconstruir estereótipos raciais.

‘BuluCyber Iori Gbigbe.jpg’, da artista mineira Zaika dos Santos Foto- Divulgação – O Globo
‘BuluCyber Iori Gbigbe.jpg’, da artista mineira Zaika dos Santos Foto: Divulgação

Já o artista angolano Kiluanji Kia Henda traz uma perspectiva diferente: para ele, o afrofuturismo é um refúgio privilegiado. Tendo vivido a guerra civil em seu país, ele enxerga o movimento como um oásis em períodos de extrema violência.

— Na guerra angolana, o paralelo mais próximo da ficção científica era o feitiço — diz. — Muito do que eu ouvia das histórias do front sobre feitiços eram manifestações similares às que vemos na ficção científica. Homens que voam, tele-transporte, ubiquidade, imortalidade. Daí a importância do afrofuturismo. Por vezes, a capacidade de fantasiar se torna a derradeira forma de resistência

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